Minha sina é arrumar trabalhadores braçais com habilidades intelectuais. Quem me acompanha há um tempo e tem boa memória deve se lembrar do meu marceneiro do Rio, que fez minhas estantes e mesa de estudos. Limeira. Um gentleman – provando que estas qualidades nada têm a ver com o quanto de dinheiro você tem em sua conta bancária ou de dentes na sua boca. Até hoje me arrependo de não ter seguindo a sugestão dele de fazer aquelas gavetinhas pro teclado – só provando que ele tinha mais conhecimentos sobre ergonomia do que eu.
Enfim, Bial. Estou montando meus aposentos reais aqui em Versailles, uma vez que minha mudança veio para cá sem mim, quando eu ainda estava em NY (tô imaginando minha mudança andando sem mim pela Dutra a fora, chorando e descalça). Daí que foi preciso pintá-las, já que são brancas e também de chamar alguém pra montar, pois as estantes são afixadas na parede e coisa e tal. Chamei o pintor que fez reparos no consultório de Formiga Irmã, o Rui. Fu Sis já havia me contado sobre os hábitos literários dele e em como ele está sempre fazendo perguntas sobre os livros que vê no consultório da minha irmã. Além disso, Rui é apaixonado pela minha mãe. Sério. Do tipo: a primeira coisa que ele faz quando chega aqui em casa é perguntar por ela. Um pouco antes do Natal ele teve aqui pra fazer não sei o quê e disse a seguinte frase: “saudades da senhora. Ia passar aqui nem que fosse pra desejar Feliz Natal”. Mais um detalhe: ele é quase trinta anos mais novo que minha mãe. Tem uns 40 e poucos anos – mas já é avô. Rui é bonito. Tem os olhos levemente claros, corpo em forma (já foi gordo, mais um ponto pra ele. Qualquer pessoa que tenha vencido a balança merece meu respeito) e sempre chega em seu carrinho, bem melhor do que o meu, aliás (que não existe). Um tipo Russel Crowe da classe operária - se é que o Russel Crowe já não é working class. Pelo menos uma english working class, quem sabe.
No primeiro dia ele ficou pintando os móveis numa área apelidada carinhosamente por nós de Hospital das Plantas - que vem a ser um projeto de jardim de inverno frustrado, mas que fica exatamente ao lado do outrora escritório de meu pai. Rui já cresceu o olho nos livros. Conversa vai, conversa vem, sabendo que minha irmã é psicanalista, ele perguntou a ela sobre um livro do Rollo May chamado “O significado da ansiedade”. O livro é do Rimão do Meio, também psicanalista num passado remotíssimo. Rollo May é o autor predileto de estudantes dos primeiros períodos da área de humanas, em especial Psicologia, ou daqueles que acreditam na máxima socrática do “conhece-te a ti mesmo” (depois você descobre que: 1) é impossível conhecer-se a si mesmo e 2) o pouco que você conhece te desanima – run, Forrest, run!). Aliás, me lembro de, criança, ver o meu irmão lendo “Dibs: em busca de si mesmo”. O livro tinha um garotinho na capa e eu, nessa época da idade do garotinho, não conseguia entender por que uma pessoa poderia buscar a si mesmo, uma vez que ela estava ali o tempo todo com ela mesma. Mas, tergiverso.
Voltando a vaca fria: Rui começou a falar com a minha irmã sobre os filhos dele que são muito ansiosos. Que se a filha não recebe o que quer na hora em que pede, fica nervosa. “Aí vai na Madrigal [padaria] e compra um monte de doce”. Já me identifiquei com a menina! Aí ele ficou dizendo que tem vontade de ler mais sobre o assunto, pra ver se pode ajudá-la e minha irmã dizendo que não necessariamente conhecimento significa sofrer menos e resolver os problemas, pois se assim fosse, toda pessoa inteligente e culta seria feliz. No que ele concordou.
O momento áureo foi quando ele disse que tentou ler Freud, mas achou muito difícil. Aí eu fui ao delírio.
No segundo dia ele vem pedir o livro . Diz que o sonho dele era ter uma biblioteca como a nossa (um quartinho cheio de livro que vem a ser o escritório de papis). Que ele tem mais de 400 livros baixados na internet! Uau! Fiquei pensando: livro baixado na internet tem que estar em domínio público. Livro em domínio público é livro com mais de 60 ou 80 anos de morte do autor – dependendo do gênero (teatro, literatura...), logo o cara só deve ler os clássicos! Quero casar com o Rui.
Ontem ele foi buscar uma estante minha que estava no consultório de Fu Sis pra vir pro meu quarto. No que esvaziou viu alguns livros de Nietzsche e perguntou: “ele tem alguns escritos sobre Hitler?”. Veja só, minha gente! Nietzche foi, injustamente a meu ver, acusado de ser um colaboracionista do nazismo, em função de alguns textos seus que foram mal interpretados – como “O super homem” – dentre outras posições. O cara lembrou disso! Pena pro Nietzsche, mas bom pra ele.
Hoje ele está aqui em casa, finalmente montando os móveis. Conversa vai, conversa vem e ele se depara com meu bonequinho do Nietzsche. Sim, eu tenho um bonequinho do Nietzsche (parênteses: a sobrinha da Fló, de seis anos, esteve aqui em casa e amou o Nietzsche. Aí queria escrever um bilhetinho pra ele e me perguntou como ele se chamava. Eu cocei a cabeça, olhei pra Fló e disse: “ah, é meio complicado o nome dele. É Nietzsche”. No que ela me olhou e disse: “nem um pouco complicado”. E escreveu: “para o Niti”. Adulto complica, né?). Pois bem. Rui olhou meu bonequinho do Nietzsche e disse: “quem é esse?”. Respondi que era o Nietzsche e quase emendei uma discussão sobre a suposta adesão dele ao nazismo, mas achei melhor não revelar que eu e Formiga Irmã ficamos conversando sobre ele (o Rui, não o Nietzsche) nas horas vagas. Aí ele manda: “sua irmã também tem um bonequinho desses no consultório dela, não tem?”. Falei: “sim, ela tem um Freud”. Ele: “onde vocês arrumam esses bonequinhos?!”. Tive que me controlar pra não morrer de rir. Imagina ele pensando “que família louca! Mania de bonequinho e livro!”.
Lembrei que a Frida Kahlo que eu dei pra minha sobrinha está aqui. Achei que ele estava pronto pra ser introduzido - no bom sentido - às artes plásticas. Mostrei e já trouxe um material didático de apoio – um calendário que eu comprei da Taschen, da Frida. Ele já larga o silvissio e vem: “ela era americana?”. “Não, mexicana”. “Sobre o que ela escrevia?” “Não, ela não escrevia, era pintora. Olha os quadros dela.”. E ele olhando super interessado e dizendo: “olha, esse aqui você podia fazer um bom quadro!”. Claro que quem pregaria o quadro seria ele.
Formiga Irmã já delirava: “a gente podia contratá-lo fixo aqui pra casa”. Já pensaram? Um personal faz tudo 24 horas por dia a minha disposição? Sem duplos sentidos, mentes infectas. Se eu tivesse muito dinheiro, além de Bertha, minha governanta alemã, William, meu mordomo inglês, eu teria um Rui.
É isso. Assim que a prataria estiver polida eu boto fotos.