sexta-feira, maio 21, 2010

Honre o dom


Eu nunca vou entender o que leva um ser humano a ter um emprego meia-bomba a vida inteira. Aliás, pra mim só tem uma justificativa: a pessoa não gostar de mais nada no mundo e entre isso e não-se-sabe-o-quê vai isso mesmo. Eu entendo que em certas fases temos que passar por certas coisas. Mas a pessoa passar a vida num emprego chato, porque "se é trabalho é chato", não entendo.

Sobrevivência? Não. Existem mil maneiras de se sobreviver.

Acho que isso vem do meu pai, na verdade. Meu pai foi um cara pobre pobre pobre de marré marré marré marré. Meus avós vieram de Portugal no início do século XX - separados, só se conheceram aqui. Minha avó casou com 13 anos. Moravam no Morro do Tuiuti, em São Cristóvão, Zona Norte do Rio. Minha avó era lavadeira e fazia quentinha/marmita pra fora. Meu avô vendia quadros que ele pintava na feira hippie de Ipanema. Teve um bar - faliu. Teve um estúdio de fotografia - faliu. Meu avô ganhou duas vezes na loteria e perdeu os prêmios. Tiveram 13 filhos (desculpa quem já ouviu essa história um milhão de vezes, mas eu não me canso de repetir, pois sempre tem gente nova por aqui).

Meu pai era entregador de fruta de uma quitanda quando resolveu ser médico, após perder o irmão mais velho de meningite de forma estúpida e banal e ficar extremamente chocado e deprimido. Nunca ninguém na família dele tinha feito faculdade. Ele teve que trabalhar e estudar ao mesmo tempo. Começou a emagrecer, minha avó pedindo pra ele parar de estudar, porque ia ficar doente, a família zombando dele (ih, olha lá o doutorzinho) e ele keep walking. Passou no vestibular e tô eu aqui. Uma coisa que ele sempre, sempre, sempre frisou: minha filha, a gente tem que trabalhar no que gosta. Nunca vi meu pai reclamar de acordar às três da manhã pra ir ver paciente - ele era cirurgião.

Ok, a vida é complicada, a gente tem que se adaptar ao que gosta, todo emprego tem seu lado chato (TODO), mas...se a única razão do seu emprego é ter dinheiro pras horas em que você não está nele, tem alguma coisa errada com a sua vida. Meu pai dizia outra coisa que era: se é pra viver como pobre eu não preciso de dinheiro. Ele falava isso pra dizer que dinheiro foi feito pra gastar, mas eu penso também num outro sentido de pobreza. Se é pra você ter uma vida miserável no sentido de só pensar no final de semana, nas férias, em viajar...pra quê ter dinheiro? Tudo bem, fins de semana, férias, tudo isso é ótimo. Mas se ele vira o centro da sua vida...Não é mais fácil ter outra vida e ser feliz no dia a dia? Ou talvez abrir mão do carro X pra ter outro mais humilde - ou não ter? Ou levar mais tempo economizando pra se fazer o que quer? Ou viver de forma mais modesta?

Empregos-bosta dão câncer. Hipertensão. Depressão. Úlcera. Minha irmã é psicóloga e ela vive vendo este tipo de caso. Tenho amigos que trabalham com RH e dizem: salário não segura ninguém. Salário não é motivação. Motivação é um emprego bom. E o que é bom? Só cada um pode dizer.

Sabe grandes pesadelos da sua vida? Acho que todo mundo tem um grande pesadelo. Pra uns pode ser não ter filhos, pra outros se transformar na mãe/pai, pra outros ser pobre. O meu grande pesadelo, desde pequena, sempre foi ter um emprego chato. Talvez por isso eu tenha pirado tanto na época do vestibular - naquele momento eu achava que o que eu fizesse seria uma sentença pro resto da vida. Ao mesmo tempo, crescer foi encarar que a vida nem sempre parece uma festa e que a galera da pesada curtindo muito em clima de azaração uma hora casa, morre de acidente, fica careca ou desaparece. E aí, maluco...aí é você e você. No final das contas é só você e você. Sempre. Há momentos de tédio, ok, e é preciso encará-los como parte. Mas o trabalho é mais da metade da sua vida. Se ele é uma merda, quer dizer que mais da metade da sua vida é uma merda.

Minha irmã com 32 anos foi fazer outra faculdade. Corria, apertava daqui, dali, pegava dinheiro aqui e ali, trabalhava. Minha família toda é repleta de exemplos desse tipo. Então, não venha me dizer que o seu emprego é chato, mas você precisa dele. Diga: meu emprego é chato e eu não tenho coragem de peitar uma mudança. Meu emprego é chato e eu não sei o que fazer da vida, por isso vou ficando. Meu emprego é chato, mas eu não sirvo pra mais nada.

Ainda hoje tava lendo uma crônica da Elisa Lucinda (oi Maria!) em um jornal aqui da cidade em que ela se convidou pra escrever. Ela diz que a mãe dela dizia: "honre o dom". É isso, cara. Honre o seu dom. Saiba pro que você nasceu e corra atrás. Diria mamãe: tá na bíblia, é a parábola dos talentos. A Elisa diz ainda que o dom (eu prefiro vocação, pois dom me dá ideia de algo nato e não acredito nisso) é um riacho que corre dentro de você. Se você não canaliza isso, a infiltração vai pra outras partes. E dá merda. Em algum sentido a merda vem.

Se não nasceu pra nada, invente - porque eu acredito que o dom é inventado, ninguém nasce pronto. Adapte aqui e ali. Mas não fique num emprego meia bomba ou péssimo. Não tô dizendo pra ninguém sair jogando tudo pro alto. Se planeje. Espere o momento certo. Só não me venha de chorumelas. Dizendo que a vida é assim, a vida te levou até aí, você não pode mais sair. Sempre dá. Sempre. Não deposite sua felicidade em coisas fora de você.

Ah, e você faz isso, Carrie? Faço leitor. Tá tudo aqui (bate na cabeça com o dedinho) planejado na minha cacholinha. Tá por muito pouco pra tudo ficar como eu quero. E quando eu tô quase esquecendo eu olho no espelho e falo: "quê isso, Carrie! Vamos lá! Olho de Tigre, garota!". Acho que agora vou incorporar o "honre o seu dom" ao meu discurso.

Meu sonho é sonhar com a segunda feira. É pensar: nossa, hoje é sábado? Nem vi. É acordar e pensar: hoje é domingo ou quarta? Eternos sábados pra todos. É o que eu desejo.

E esse post é mais pra mim do que pra qualquer pessoa. Porque eu preciso me manter na trilha. Preciso me lembrar do que é importante pra mim e não o que é importante pros outros. O que é importante pra mim é isso. E eu vou fazer o que precisar pra chegar lá, até eu ter conseguido. E se acaso esse lugar me fugir eu vou em busca dele novamente. É minha única ambição de vida: viver segundo mim mesma.

Ficou meio épico e grandioso esse texto, mas é isso. Quando eu morrer, daqui a muuuitos e muuuuitos anos quero olhar pra trás e pensar que eu tentei tudo que queria tentar. Em algumas coisas tive fracasso, em outras não, mas não me acovardei. Meu maior medo é me acovardar. Quero tentar, ainda que com medo, ainda sem a menor noção de onde vai dar. Mas tentar.

Você pode até achar ingênuo, radical e romântico. Mas é isso aí. É onde eu preservo meu romantismo e minha crença.

(aí ela sobe na mesa e diz: Oh, Capitan! My Capitan!)

21 comentários:

raq disse...

concordo com tudo isso. era o que eu pensava quando estava na faculdade mas agora tô na dúvida entre:
a) Meu emprego é chato e eu não sei o que fazer da vida, por isso vou ficando.
b) Meu emprego é chato, mas eu não sirvo pra mais nada.
:o\

Ila Fox disse...

Você traduziu meu sentimento nos últimos anos.

Vou contar minha saga também:

Eu sempre desenhei, desde criancinha, e todos pensavam que eu seria desenhista, até eu. Um dia li numa revista que no Brasil era muito difícil ganhar dinheiro com isso. E eu acreditei (em termos, ainda é difícil ganhar dinheiro com isso. Se vc vai ser quadrinista, vai ter q fazer e acontecer se quer ser lançado no mercado editorial).

Bem, fiquei dois anos em depressão depois que terminei o colegial. Não sabia o que fazer. Fiz o vestibular para artes plásticas na UEL no impulso (leia: familia me arrastando). E passei na sorte (haviam muitas meninas q estavam estudando lá no dia, e eu lá, de gaiato).

A faculdade de artes plásticas em si, te ensina a dar aula. Que não era uma coisa que me apetecia sabe? minha mãe é professora, e eu via o quanto era estressante lidar com alunos.

Terminando a faculdade me meti em empreguinhos chatos. Como diagramadora de catálogos e listas telefonicas (diagramador é quem monta no computador o texto e imagens), editora de imagens, uma coisa mezzo designer... pra ajudar o salário era uma merda. Então, minha situação era esta.

Depois que casei e mudei, fiquei encafifada de ter que procurar um emprego numa cidade desconhecida e maior. Eu não queria. Mas também não queria ficar parada, queria ter meu dinheiro. O que fazer?

Me lembrei que eu sempre gostei de desenhar, mas fiquei meio insegura de retomar (eu estava parada desde o colegial). Bem, retomei, fiz um blog e hoje ganho mais com meus desenhos que se eu trabalhasse das 8 às 18 num emprego chato. Juntei o útil ao agradável! aeeeee! \o/

As vezes, vejo aquelas mocinhas nos balcões de supermercado, aquelas caras cansadas e entediadas... e penso quantas delas seriam ótimas trabalhando em outro lugar...

Todo deveriam ter a chance de trabalhar no que gosta!

Unknown disse...

Coloca o link da Crônica da Elisa Lucinda,por favor...

Luciana Nepomuceno disse...

Oh, capitan! My capitan! De uma forma bem ingênua, romântica, radical e muito, muito corajosa e feliz...

trinity disse...

Só para constar - principalmente para mim mesma. Digo: Meu emprego é chato e eu não sei o que fazer da vida, por isso vou ficando.

Patricia Fernando disse...

Meus olhos estão cheios d'água! Traduziste tanto o que tenho sentido. Muito a refletir. Vou imprimir e ler algumas vezes para me lembrar "olho de tigre, garota!olho de tigre!"

Obrigada!

Bjos

Carrie, a Estranha disse...

Raq,

É, essa fase de indefinição é muito chata. Mas se isso realmente te incomodar e for um problema - sim, pq pra muita gente não é - vc vai achar alguma coisa. Tenho certeza.

Ila,

Conhecia um pouco da sua saga, mas q bom saber q vc consegue ganhar mais do q num emprego "normal" e ainda por cima pra trabalhar em casa e no q gosta! Fico feliz por pensar q ainda há esperança.

Márcia,

Eu to tentando achar, mas parece q o jornal só digitaliza depois. É um jornal mensal e é gratuito. Te dou o endereço, aí vc fica de olho qdo sair - deve ser a próxima edição: www.voltacultural.com.br

Borboleta,

;)

Trinity,

Mas não precisa ser. Vc pode achar outra coisa.

Pil,

:) Bigada. Q bom q vc gostou.

Bjs garotas

Cinthya Rachel disse...

onde eu assino? mega concordo!

Nayara disse...

Oi Carrie,

minha sensação é de que este post vc fez para mim! Só faltei ter no final: ei, Nayara (ou Bracho...rs), acorda!! Levanta e vai à luta!!

Muito obrigada!

Carrie, a Estranha disse...

De nada, Nayara. :)

Cinthya, tá assinado.

liber disse...

Oh, Captain, my Captain!

(De pé em cima da mesa, lógico).

Eu gosto de desenhar e pensei que ia fazer disso a minha vida. Abri um estúdio de animação e ilustração e depois de trabalhar dois anos descobri que o desenho era legal, mas os clientes e a obrigação do trabalho eram de lascar.

Meio que sem querer, acabei virando professor. E aí acabei me achando. Na sala de aula consegui reunir o desenho com o romantismo, o ideal e a paixão. Mas, parando pra pensar, acho que dei muita sorte.

Ótimo seu texto, estranha. Deu voz pro que eu e muita gente pensa.

Valeu!

Keep walking.
;-)

anna v. disse...

Também já me deparei com esse dilema emprego x carreira. Há alguns anos, estava infeliz no trabalho, e tentei entrar numas de que aquele era só um emprego, para fazer jus a um salário, e que minha vida mesmo seria fora dali. Tentei, mas não consegui. Preferi pedir demissão e viver de freela a ficar ali me sentindo sub-aproveitada e sem perspectiva de mudança. Claro que foi muito melhor. Mas em essência, acho que existem esses dois tipos de pessoa. O tipo que está ok com o fato de ter um emprego e viver sua vida de verdade fora dali; e o tipo que tem necessidade primordial de se sentir produtivo e com propósito naquilo que faz - ou, em outras palavras, ter satisfação com o resultado final do seu trabalho. E como tantas coisas, acho que a principal influência é o exemplo que temos em casa, com nossos pais -- como podemos comprovar com seu depoimento sobre o seu pai.

Carrie, a Estranha disse...

Anna V.,

Com certeza. Existem tipos de pessoas, vc bem disse. Só q, na minha cabeça (posso estar sendo preconceituosa) eu acabo achando q gente q não é q nem a gente, nesse aspecto, é meio idiota. É, eu sei. Bobagem a minha. Mas eu não me vejo, por ex, me apaixonando por alguém assim. Sei lá. Acho muito pouco.

Carrie, a Estranha disse...

Oi Liber,

Obrigada pelos elogios. Volte sempre!

Bjs

anna v. disse...

Carrie, eu também. Os dois tipos são quase incompatíveis.

Patricia Scarpin disse...

Eu queria te escrever um comentário gigante, mas infelizmente tenho medo de que alguém do meu trabalho o leia.

Então vai assim, curtinho mesmo: obrigada.

xx

Carrie, a Estranha disse...

Patrícia,

:)

Adriana Riess Karnal disse...

não sei bem quem escreveu o texto, mas achei emocionante,rsrsrr, parece simples, mas não é. O trabalho está relacionado com a sexualidade, quem faz sem prazer, já viu no q dá...( ou não dá).

Carrie, a Estranha disse...

Oi Adriana,

Sou eu, a Carrie! :) Seja bem-vinda e obrigada pelos elogios.

Renata Fern disse...

Oi Carrie!
Cheguei aqui pelo blog da Maria da Poesia e já relacionei o seu. Adoro trocas de experiências.
O meu maior pesadelo é a miséria do imaginário. TENHO HORROR de envelhecer apática sem ver sentido nas coisas, na vida... enfim. Quanto ao emprego, assino embaixo de tudo que você disse. Eu por exemplo, não me submeto mais a nenhum empreguinho medíocre e o risco que corro é grande também, porque tem aquela teoria de que 'isso é melhor do que nada'. Mas no meu caso, estou sempre achando que nada é melhor do que muita coisa.. Hahaha... Aí aproveito e faço do nada que sobra outras coisas mais interessantes. Coloco a cachola pra pensar na minha próxima façanha. O impedimento maior é sempre grana, só que disso já me desapeguei, quando pinta é consequencia e prazer! Mais ou menos por aí...

Mas o que importa é a ordem: 'Honre o seu dom', que frase mais entusiástica!!!

Beijo!

Carrie, a Estranha disse...

Oi Renata,

É, a Maria é uma querida.

Que bom q vc gostou do meu blog. Fique à vontade e comente sempre.