quinta-feira, agosto 20, 2009

Ou não


O Joel comentou ali na caixa de comments do outro post e eu andava pensando nisso há tempos. Não existe vida mais abençoada do que a de doutorando. Doutorando com bolsa, claro. E bolsa do CNPq, de preferência. São 2.200 reais. Limpo. Sem imposto. Apenas pra você estudar. E pensar. E se descabelar. E achar que tá tudo uma merda. E divagar sobre o rumo do seu trabalho durante meses e o rumo da civilização ocidental – que, é claro, quase sempre estão interligados, afinal se você fosse modesta não faria doutorado. E ter crises existenciais. E achar que vai ficar louco, que seu trabalho é uma merda, que não vai dar conta e vai sucumbir – fisicamente, inclusive – diante de tudo.

E, além de tudo, eu ainda fui pra NY. Com bolsa – pequena, U$1.100, pra NY, que é quase nada, mas já é uma ajuda. Mais “o da passage”. E a oportunidade de estudar numa grande universidade estadunidense de graça.

Eu realmente sou uma pessoa de muita sorte. Sim, porque não basta ser bom. Bom tem muita gente. É preciso ter sorte. E eu tenho. Em alguns setores da minha vida, pelo menos. Quando eu vejo que as pessoas fazem mestrado pago e até mesmo doutorado pago eu penso: cara, eu tenho muita sorte. Porque eu não passei um mês sem bolsa nem no mestrado nem no doutorado. Eu pensaria mil vezes se tivesse que estudar de graça. Se tivesse que pagar? Aí nem fudendo, amigo.

Eu tive muita sorte em trabalhar na Esculacho. Foi exatamente o que eu precisava, na hora em que eu precisava. E também fui demitida na hora certa. Ganhei 23 mil de indenização (não me perguntem porque, pois eu só trabalhei dois anos e nem dava tanta aula assim e fui mandada embora no prazo certo. E a moça do sindicato ainda queria que eu entrasse na justiça porque eu poderia ganhar mais 10 mil e eu disse: “hein? Tá doida? Vou embora antes que eles descubram que me pagaram errado!”). Com o dinheiro eu saldei minhas dívidas, fiz uma viagem de 21 dias pela Europa, comprei um laptop, uma câmera e um I-pod. Sim, ladrões, nem adianta. Não tenho mais nada. Torrei tudo, sem pensar no amanhã. Poucas vezes eu penso no amanhã. Porque eu sempre tenho muita sorte. Ou porque eu sou apenas lerda pra certos assuntos.

E foi ótimo porque aí eu pude me dedicar 100% ao doutorado. E quando eu “terminei” com a minha orientadora e pensei “agora fudeu”, eu peguei um orientador melhor ainda. E, só por causa dele eu consegui a bolsa sanduíche. Se eu continuasse com a minha ex-orientadora não teria rolado. Ou seja: que sorte a minha ter brigado com ela e ido pra um cara que na época eu mal sabia quem era.

Quando eu voltei pro Brasil eu pensei: “termino essa porra e entro nas três universidade particulares de Gotham e fico aqui até passar num concurso. O que não vai demorar. Porque eu tenho muita sorte”. Consegui duas. Em um mês de procura. O que foi até bom, pois não teria como pegar a terceira.

Agora tô ganhando um pouco mais do que na bolsa de doutorado. Pra ralar o dobro. O dobro, mas diferentemente. Num trabalho meramente mecânico e braçal. Que tá me consumindo. Me sugando. Sim, porque dar aulas de um jeito simples é muito mais complicado do que dar aulas de um jeito complicado. Entenderam? É difícil dar aulas pra um nível que você, sem falsa modéstia, já tá há mil anos luz distante. Não numa escala evolutiva, mas você tá longe. Aliás, você duvida que algum dia tenha estado nele, inclusive – não me entendam mal, por favor. É difícil você ter que pensar que de cada 5 palavras que você diz, quatro delas não são óbvias e você tem que explicar. Mas aí você pensa: como vou explicar o que é? É como quando eu era criança e perguntei pra minha mãe: “o que significa significa?”. É como o João Francisco quando pergunta: “por quê” numa aspiral ascendente e vertiginosa, até chegar o momento em que o porquê não faz mais sentido. Tem horas em que eu não consigo sequer enxergar o nível de dúvida que eles podem ter. Pode ser que seja uma deficiência minha como professora iniciante. Pode ser apenas falta de paciência. Ou arrogância. Talvez a metáfora com o João Francisco não tenha sido uma boa ideia. Porque pode dar uma ideia de que a curiosidade sem limites me irrita. Não é isso. Quis dizer apenas que existe um nível de ignorância que você não consegue sequer conceber, sendo complicado explicar. Mas talvez seja um bom exercício ter que voltar sempre ao básico. Talvez esse texto não tenha sido uma boa ideia, pois não é nada disso.

Enfim, mas não tô reclamando. Não é isso. Afinal, é exatamente isso que eu quis e busquei e preciso exatamente agora. E, como diria, Bibi, vulgo Fu Sis, vulo “O Baru”, eu estou aqui fazendo um reservatório de amor, dinheiro, carinho. Porque ao mesmo tempo sei que tudo isso vai durar muito pouco. Por uma série de razões. Então eu tento conservar essas sementes de cotidiano que não durarão pra sempre.

E eu desisti de concursos, por enquanto. Porque não tem como estudar e eu não posso “fazer por fazer” mais. E quanto mais eu desisto, mais aparecem chances. Chances cada vez maiores. E melhores.

E outras partes que eu achava que nunca aconteceriam e já tinha desistido e de repente acontecem de forma tão inesperada que é quase como se não pudesse ser verdade. Como se o Rodrigo Santoro ligasse aqui pra casa me chamando pra sair. Eu nunca acreditaria e mandaria ele (a pessoa que ta me passando trote) à merda.

Mas que tá foda, tá. O silvisso tá bom. Tem várias coisas boas. É bem melhor que a Esculacho em vários sentidos. Mas são quatro cursos de coisas que eu sei apenas vagamente. E são aulas de quatro horas – ainda que os alunos só fiquem em duas delas. Quatro horas por noite. Da mesma matéria. E a matéria nunca dá, mesmo os alunos sumindo 40 minutos no intervalo. E minha voz tá falhando, mesmo com os litros de água. Sempre termino antes, por mais que prepare. E não consigo dar dianteira nas aulas. Preparo no dia a aula do dia. Por isso não tem dado tempo de absolutamente nada. E eu corro, corro, corro e os dias parecem ter 10 mil horas – e isso não é uma coisa boa. Não por acaso eu voltei a ler o Paul Auster sobre Edens imaginários.

Mas tá bom. Quer dizer, tá ruim, mas tá bom. Afinal eu sempre tenho muita sorte. Sou uma torta de mirtilo, mas tenho muita sorte.

4 comentários:

Ila Fox disse...

Ai Carrie, as coisas simples e o trabalho braçal é o que normalmente mais desgasta e desestimula a gente.

Por isso que agora, casada, posso me dar o luxo de fazer o que sempre quis, trabalhar pelo computador, em casa! sem a necessidade de trabalhar para me sustentar, aguentar chefe me aporrinhando, cumprir horário em empresa fazendo uma coisa que não tinha a mínima graça.

p.s - Nóóó, 23 mil de indenização?? o que foi que pegou ? treta com hora extra foi?

Bárbara Anaissi disse...

esse nível de ignorância que a gente não consegue conceber é o q mais me irrita no trabalho. a gente perde tanto tempo com isso, né? pode até ser um bom aprendizado, mas q tira do sério tira... não acho arrogância não.
bjs

Carrie, a Estranha disse...

Ila, não me pergunte. Na verdade foram 17, mas aí juntou com 5 mil não sei de quê. Na boa, nunca entendi.

Bárbara,

Com certezíssima. Quer dizer, o pior não é a ignorância. O pior é a sensação de não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe.

Bjs

Anônimo disse...

Excelente o post! Com certeza vc tinha q fazê-lo!
Esses desabafos pós-doutorado são ótimos!!! Lembrando do tempo q a gente era feliz e, com tanta coisa p se descabelar, não sabia...