terça-feira, julho 28, 2009

IV

E ele era médico. Viu tudo antes de todo mundo que aconteceria com ele. Foi tratado por um ex-aluno. O mesmo que nos disse que ele não duraria muito tempo e que poderíamos chamar os parentes – meu irmão, na época, estava no Canadá. Morreu no hospital onde ele trabalhou por mais de 40 anos, onde 4 dos seus 5 filhos nasceram, ao lado do prédio onde morou por outros tantos. Na ocasião dormiam minha mãe e minha irmã mais velha. (Justo. Muito justo). Minha mãe ficou feliz porque ele finalmente estava com um semblante tranqüilo, depois de ter passado meio mal durante a noite. Minha irmã não quis tirá-la dessa ilusão e deixou-a pensando nisso mais alguns minutos, até que enfermeiras e médicos incrédulos – é o Dr Herberto? – checavam seus sinais vitais e repetiam apenas um mecânico sinal de cabeça, negando. Tudo cessara. Até mesmo os relógios dele, que, numa estranha coincidência, pararam todos assim que ele morreu. Quem sabe para eternizarem o momento. Se isso fosse um filme, nessa hora a câmera fecharia no grande sorriso do meu pai na foto que decora o no saguão do hospital, junto a tantos outros médicos que fizeram a historia do hospital, enquanto um antigo jazz, dos anos 40, tocava num disco de vinil arranhado.

Infelizmente eu tinha ido ao Rio, resolver coisas que julgava na época, importantes, e disse pra ele: “fica bonitinho, viu bebê?!”. Ele não ficou bonitinho. Queria ter dito, “morre, não”, mas não seria de bom tom. Quando o telefone tocou na manhã seguinte no meu apartamento eu soube. Minha faxineira disse: “Deus só quer os bons” e continuou limpando a casa, na sua praticidade de sempre. Assim como "os bons morrem de câncer", como diz minha comunidade no orkut.

Seu enterro foi num dia de festa e glória. Dia de sol de dezembro, com muitos amigos, pacientes, colegas, alunos e ex-alunos – ah é, meu pai foi um dos fundadores da faculdade de medicina daqui e há até um auditório ou prédio (não lembro) com seu nome. (Nada mal pro filho de lavadeira e pai pintor de quadros que expunha na feira de Ipanema e ganhou duas vezes na loteria e conseguiu torrar o prêmio, nem tão grande, devido à totla incapacidade de gerir seus negócios - característica que vem acompanhando as gerações seguintes). Faculdade esta que hoje em dia tem um curso de Comunicação onde eu vou dar aulas. (Papai gostou muito de saber). Seria um dia de festa se o protagonista não estivesse meio paradão. Quando o caixão desceu no cemitério moderno, só de lápides e colinas verdes, um passarinho (beija flor) parou em cima, exatamente em cima, do caixão por alguns segundos. Cena intrigante que várias pessoas comentaram depois. Toda vez que chegou ou saio de Gotham e vejo o cemitério digo: “tchau, pai” e “oi, pai”.

Descobrimos que ele era chamado de “médico dos pobres”. Afinal, qualquer problema, “vai lá no doutor Herberto que ele dá um jeito”, diziam os mais humildes. Não sei se ele sabia desse título. Provavelmente nunca vou saber. Se sabia, nunca disse. É também com orgulho que digo que o centro de estudos urológicos de um hospital público da cidade ganhou o seu nome, também numa homenagem póstuma (nada mau pra quem foi o primeiro da família a terminar um curso superior). E um dos médicos que fez o discurso ressaltou o fato de que ele sempre dizia que continuava a trabalhar no hospital da prefeitura porque era uma forma de estar perto dos que mais precisavam. Mesmo que ele não precisasse mais. Mas assim era meu pai: se importava, mesmo quando não precisava.

Meu pai foi o homem mais honesto que eu conheci em toda a minha vida. Seus padrões éticos eram rígidos e inflexíveis. Tido até como “bobo” por muita gente. Podia ter ganhado muito mais dinheiro na vida. Meu pai votava no PT e a única coisa boa dele ter morrido em 2001 foi nunca ter visto o governo Lula – sim, papai estaria entre os decepcionados e não entre os que o defendem a todo custo.

Meu pai era um vulcão que explodia de tempos em tempos, tendo rareado cada vez mais nas explosões com o fim da vida.

3 comentários:

Ila Fox disse...

Carrie, emocionante os detalhes finais.

O relógio parado, o beija flor...

Quando meu bisavô morreu me lembro de escutar uma revoada de canários pousando numa árvore próxima, então toda vez que escuto um eu me lembro dele.

Seu pai sem dúvida foi um bom homem, e para mim que ele continua cuidando das pessoas, mas de outra maneira. ;-)

Carrie, a Estranha disse...

;)

Sardas disse...

Deu, né? Chega, né? Já tô desidratada de chorar...
Beijos

;)

Pati Linden