sexta-feira, julho 18, 2008

Breve História de uma jovem senhora


Ontem, dia 17 de julho, Gotham City fez 54 anos. Uma jovem senhora enxuta. Há exatos 54 anos atrás – quer dizer, um pouco mais, durante a Segunda Guerra Mundial – nosso então presidente Getúlio Vargas, que nunca foi muito chegado numa democraciazinha, nutria profunda admiração pela galera do Eixo (Hitler, Mussolini e a rapeize deste naipe). Aí os EUA, do time dos Aliados, chegam e falam: “GV, a parada é o seguinte: tu entra do nosso lado que a gente te dá uma siderúrgica, cumpadi”. GV, que tinha convicções políticas sólidas até não interferirem no bolso dele (como todo político, seja de direita ou esquerda), disse: “ih, demorô! Já é! Onde é que eu assino?”. Pronto. Na escolha de onde colocarem a CS optaram por um vilarejo que pertencia à Barra Mansa (é, ainda temo que agüentar ter pertencido à Suineland - como diz minha amiga Karine - um dia), em função de sua localização estratégica entre Rio, SP e Minas – e seus habitantes padeceriam eternamente da ausência de uma identidade própria; ou talvez a identidade seja exatamente o hibridismo, a falta de sotaque; uma espécie de Brasília.

Final dos anos 50, Betinho, médico recém formado na hoje UERJ (na ocasião uma série de faculdades isoladas), o segundo (ou terceiro?) mais velho dos 13 filhos do pintor (de telas), mágico, inventor e comerciante português Arnaldo Pereira (pai desconhecido, possivelmente um marinheiro dinamarquês, viking; padrasto extremamente cruel e mãe Carolina, de profundos olhos azuis que viveu até os 100 anos) e de Anunciação Lopes Pereira (o pai nunca se acostumou ao Brasil, retornou à Portugal onde morreu em uma caçada em sua Quinta), dona de casa, lavadeira e cozinheira, moradores do bairro de São Cristóvão, no Rio (zona norte), mais especificamente do morro do Tuiuti, segue para a pacata cidade de Bom Jardim de Minas, na Serra da Mantiqueira, em busca de trabalho. Lá chegando, começa a visitar a vizinha Andrelândia e conhece a jovem Malu, 11 anos mais nova que ele, então namorada de um moço que trabalhava no Rio, filha de João da Cruz de Andrade, Coletor Federal (que entregara o posto debaixo de uma carabina durante a “Revolução” de 30), e Enedina Cunha de Andrade, professora, de Ribeirão Vermelho, cujo pai era português. Betinho também era noivo. Ambos se apaixonam, terminam com seus respectivos e se casam. Novamente em busca de emprego, Betinho e Malu seguem pra Coronel Fabriciano, em Minas Gerais, onde a então siderúrgica Acesita oferecia boas condições de trabalho para médicos e trabalhadores em geral. Lá nasce a primeira filha do casal.

Betinho com seu Ford Bigode enfrentava a Zona da mata mineira para fazer atendimentos nos locais mais inóspitos. E médico de interior faz de tudo que aparece: parto, cuida de menino, de velho, de quem precisar ser cuidado. Malu, enquanto o marido passa as madrugadas às vezes atendendo pacientes, espera pacientemente em casa, já grávida da primeira filha, sozinha e longe da família.

Pouco tempo depois, novamente atraídos por boas possibilidades de emprego, os dois rumam para Volta Redonda, onde um presidente que era tido como pai dos pobres montou uma fábrica que era conhecida como a mãe, tamanha as facilidades para os seus empregados. Em Voltaço eles constroem a vida: têm mais quatro filhos, Betinho trabalha durante quase 40 anos no hospital da CSN, é dos primeiros professores da faculdade de medicina da cidade e chega a fazer parte de uma clínica no final da vida, quando os ventos da privatização tornaram órfãos milhares de trabalhadores.

E quase meio século depois a pequena caçula do casal pede a metade do espírito aventureiro e desbravador deles para ir morar em Nova York – também em busca de melhores condições de emprego, fazendo a migração contrária de seus antepassados, da colônia para a metrópole.

Betinho, nas difíceis fases da vida, tinha que lutar contra os poucos recursos financeiros, estradas de terra que acabavam no meio, cobras, solidão. Sua caçula não terá nenhum desses problemas – talvez a solidão. Outros perigos: de um avião se chocar contra o prédio em que ela está, de um atentado no metrô, de um atirador enlouquecido adentrar a sala de aula onde ela estiver (atirador, este, cujo peso de uma civilização que busca a excelência a qualquer preço - que vira uma potência depois daquela mesma guerra que deu uma siderúrgica pra cidade do pai da menina - que não admite a falha, o tropeço, a dúvida; fruto de um país que produz tanta riqueza que não sabe o que fazer com ela, a não ser gerar filhos doentes e neuróticos). A menina pede a Deus ou quem estiver ouvindo pra sair da rota desses malucos.

A história, meus caros, é dialética. Já dizia o velho barbudo: nenhuma classe produziu tanta riqueza e beleza quanto a burguesia. Nenhuma classe produziu tantos meios de causar sua própria derrocada. Toda época tem seu lado bom e seu lado ruim.

História é isso. História é o que acontece comigo e com você, caro leitor. Faz História tanto o Getúlio que cria uma cidade do nada e no nada, quanto o meu pai e a minha mãe, que vêm morar nela (e a minha avó que vem pra um país estranho durante a Primeira Guerra e eu que vou pra outro, cujas ações o transformaram em alvo fácil). História é você brigar com o seu namorado no dia 16 de setembro de 2001 porque ele não consegue achar um absurdo os atentados ao World Trade Center, alegando que várias pessoas morrem todo dia no Oriente Médio e ninguém liga (e não conseguir entender que as duas coisas são horríveis da mesma forma e uma não justifica a outra e aí você se pergunta o que eu estou fazendo com um sujeito desses ao meu lado?). História são presidentes inventando cidades, países e religiões, mas são também as pessoas que vão morar nessas cidades, inventando sonhos e objetivos, acreditando ou não nos deuses criados pelos homens. História é o que te une ao restante da humanidade. História é saber que cada pequeno ato de cada um influencia o mundo todo. A História é feita pelos pequenos. Por homens e mulheres que decidem largar o conhecido e mergulhar no abismo. Ou por homens que fazem o que podem. Ou não fazem. A História também é feita, também, pelos que não fazem.

Parabéns, Gotham City. Minha Volta Redonda que me fez ser o que eu sou hoje. Que me soldou com o aço da CSN e me fez ver a beleza em seus fogos azuis, rosas, laranjas, vermelhos...

2 comentários:

Anônimo disse...

Gostei!
Gostei mais da parte que nos, netos de imigrantes, fazemos o caminho ao contrarios deles, sempre a busca de coisas novas, auto-melhoramento ou novos horizontes. Somos todos feitos dos mesmos sonhos! E todos vencemos.
Beijos. Te espero aqui nesta patria MARAVILHOSA que adotei como minha e gentilmente me adotou tambem e que eu AMO.
Hetie

Alvaro disse...

Que texto lindo, Carrie querida!
Verdadeiramente tocante.
Beijo grande, do
Alvaro