domingo, junho 22, 2008

Falando joãofanquicamente


João Francisco, meu priminho de apenas dois anos, filho do meu querido primo Júlio, o Primo Poeta, contador e encantador de causos, é detentor das mais engraçadas histórias de criança que eu conheço. Quer dizer, engraçadas pra mim. Talvez por eu achar que ele se parece muito comigo quando eu era criança. Espiritualmente falando. João Francisco é muito austero e grave. Do alto de seus dois anos, tem os olhos castanho-escuros profundos de adulto. Ao mesmo tempo – e ao contrário de mim – João é totalmente popular na minúscula cidadezinha do interior de Minas onde mora. É totalmente simpático aos chamados pingaiadas da cidade (mistos de bebuns, mendigos e malucos, tão comuns em qualquer grande cidade, mas que no interior são conhecidos de todo mundo e tratados como celebridades locais, personagens folclóricas que compõem o vasto cabedal do anedotário mineiro interiorano). João adora conversar com os pingaiadas.

Outra característica de João desde a mais tenra bebezice é sua capacidade desconcertante de encarar os outros. Certa vez, quando ele contava ainda com apenas um aninho, veio com os pais passar o Natal em Gotham City. Ao chegar, todo mundo fazendo muita festa pra ele. “Ai, que fofinho!” “Oooooi, Joããããõ! Tudo boooom??!!”. E ele sério. Não chorava, não ria, não fazia nada, só olhava todo mundo. Colocaram-no sentado na cama de casal do quarto onde eu durmo. Ele pensando: “ok, tá tudo bem, eu estou calmo”. Mais nhenhenhens de adultos enlouquecidos. Ele pensando: “tá tudo bem, não vou chorar nem me irritar”. De repente, num rompante incontrolável tipicamente seu, Formiga Irmã deu um beijo na coxa dele. O que se seguiu foi um olhar glacial de João Fanquico para minha irmã. Como quem diz: “ei, peraí! Na coxa, não! Eu tô aqui tentando ficar calmo, não perder a pose, mas na minha coxa não!”. Engraçado que ele não chorou, não gritou, mas passou o resto do dia olhando com muita desconfiança para minha irmã, sempre com esse olhar de colocar o outro a distância. Como quem diz: “quem é essa louca que sai beijando as coxas das pessoas?”. Claro. Pois para João Fanquico ele é um adulto. E você não sai beijando coxas de adulto em público, em ocasiões sociais, né?

Daí que “olhar de João Fanquico” passou a ser uma expressão utilizada entre a minha família – principalmente entre mim e Formiga Irmã, que temos todo um vocabulário próprio – para designar olhares gélidos. “Aí eu dei um olhar de João Fanquico pra ele e ele se tocou”. “Ei, não me dá esse olhar de João Fanquico, não!”.

João já sabe distinguir entre os livros do pai quem é Machado de Assis, só pela foto da capa. Pega livros e finge que está lendo.

Quando João estava com um ano e meio, mais ou menos, nasceu seu irmãozinho, Marco Antônio. Todos pensavam que João teria ciúmes do irmão. Mas não. Ele tomou para si a tarefa de irmão mais velho. Ficou mais grave e austero ainda. Anda de mão pra trás que nem o avô. Acha que ele já é grande e o irmão ainda é criança. Cuida do irmão. Quer saber onde o irmão está – diz: “cadê o imão?”. Não duvido nada que da próxima vez que eu o vir ele já esteja grisalho.

Um dia, estavam alguns adultos fazendo brincadeirinhas com Marco Antônio, do tipo que adultos fazem, com direito a vozinhas infantilóides, no estilo “Cadêêêê o Marco Antônio? Eu vou pegar eshe menino! Eu vou pegar o neném!” e em seguida perceberam o João fazendo a mesma brincadeira com o irmãozinho: “eu vou pegar eshe menino! Cadê o neném?”.

Certas vez estávamos todos na casa das minhas tias e o João começou a querer colocar o irmão em pé para brincar. Aí nós dissemos que o irmão ainda era pequeno, não sabia nem andar e nem ficar sentado. Não era grande como o João, que já sabia andar. Isso foi suficiente para deixá-lo todo prosa e sair andando pela sala, todo empertigado, coluna ereta, nariz empinado, exibindo toda sua habilidade em andar. Como quem diz: “é, eu sei andar! Olhem pra mim! Eu sou grande”.

Agora toda vez que eu e Formiga Irmã queremos mostrar que sabemos alguma coisa a gente sai andando que nem o João Fanquico. Ou dizemos: “aí eu saí andando joaofanquicamente”. Já está subentendido que é quando você quer mostrar que tá podendo – ainda que você seja muito pequeno.

Tipo eu em Nova York. Vou sair andando joãofanquicamente por lá. Não quero nem saber. Vou fazer a entrevista no consulado joãofanquicamente, vou passar pela imigração joãofanquicamente...Vou chegar na NYU joãofanquicamente. Porque a gente sempre é pequeno em relação a alguém e sempre é grande em relação a outrem. Aristóteles dizia que a coragem é uma virtude que só existe no presente. Não existem pessoas corajosas, e sim atitudes corajosas. Um indivíduo pode ter sido covarde a vida toda e de repente ter um ato de coragem. Ou vice versa. A coragem não existe em estado absoluto – e será que alguma virtude existe?

O que me faz lembrar de um desenho que eu adoro que passa no Cartoon Network: "Coragem, o cão covarde". Coragem é um cão super covarde, mas que vive tendo que enfrentar situações de risco. E ele vai e enfrenta. Morrendo de medo, mas enfrenta. Ele faz o que é preciso fazer. Ainda que com medo, mas faz. Se ele pudesse escolher, ele não faria. Só que há momentos na vida em que não há escolhas – quer dizer, sempre há, mas há momentos em que ou você escolhe ou sucumbe à sua própria covardia. Então, seria Coragem, o cão, realmente covarde ou extremamente corajoso por, ainda que com medo, conseguir tomar atitudes corajosas? Coragem é agir, ainda que com medo, ou nunca ter medo, mas não se colocar em situação de senti-lo? Mas vale um medroso que vai lá e faz ou um corajoso que nunca age? Ainda segundo Aristóteles, quem nunca tem medo é um tolo. A coragem é agir diante do maior perigo. Manter a calma, quando todos ao seu redor já perderam.

Às vezes, diante de uma situação de medo ou ansiedade desnecessária, eu volto aos meus tempos de atriz. Penso: como agiria uma pessoa corajosa nessa ocasião? Eu ajo como se eu estivesse calma. Finjo pra mim mesma que eu sou uma pessoa normal. Que eu sou outra pessoa. E chego a fingir tanto que até eu acredito em mim. Ou me sinto como um expectador da minha própria vida. Vejo as pessoas todas acreditando e penso: “he he he...que legal! Tô conseguindo enganar todo mundo! Acho que até eu mesma!”. E chego até mesmo “a fingir que é dor a dor que deveras sinto”. Que nem a piada do louco que vive com uma coleira puxando um cachorro imaginário. No dia em que os médicos vêm fazer a supervisão pra ver se ele pode ser solto ele guarda a coleira e diz: “hein, cachorro? Não tenho cachorro nenhum”. Quando os médicos vão embora ele pega o cachorrinho imaginário e diz: “enganamos eles, Totó!”. Eu me sinto enganando todo mundo. Saio andando joaofanquicamente e acho que ninguém está percebendo o quão pequena eu sou. Mas talvez o segredo seja esse. Não ser corajoso, mas parecer. Ainda que apenas para si mesmo - que afinal é o que mais importa.

7 comentários:

Anônimo disse...

Venho por meio dessa solicitar a permissão de Vossa Senhoria para utilizar o "olhar João Francisco".
Adorei seu priminho adulto.
Beijo.

Carrie, a Estranha disse...

Sim, pode usar! Ele é passível de emprestamento!

bjs

Anônimo disse...

Sei muito bem como é isso, não ser corajoso, mas parecer....
Como diz um amigo "Vamos lá, coragem!!!!"
Bjs
Dani Machado

Camila disse...

Carrie, lindo o texto...
Gostei muito da mencao ao "coragem", tb sou assim. Foi assim que entrei na faculdade, foi assim que me formei, foi assim que prestei exame da OAB e passei, foi assim que fiz muitas audiências, foi assim que conheci meu marido, foi assim que joguei a vida inteira pro alto e mudei pra Alemanha, ao casar depois de um ano de relacionamento à distância. Olhando pra trás, nem acredito que fiz isso tudo...
Boa sorte com a viagem e seja muito feliz em NY!

Unknown disse...

João Francisco é mesmo um adulto em miniatura. E tb me sinto como vc! Por isso que empino meu nariz e vou em frente, joaofraquicamente!!!!!Parabéns pelo texto. Excelente.
Bjinhos

Carrie, a Estranha disse...

Camila,

Nossa, que bonito! Vou me inspirar em vc! Espero q tudo dê certo!

Dani e Mi,

É, é assim mesmo, né?

Bjs

noite disse...

Oi,seria voce???