domingo, janeiro 20, 2008

Como bolhas de sabão


Eu tenho dois sonhos que se repetem há alguns anos, com algumas variações. Um é com o meu pai que morreu há seis anos. Ele está vivo. Não é que ele tenha ressuscitado, mas ele “deixou de estar morto” – não sei se conseguem perceber a diferença. Também não é o caso dele não ter morrido. Ele estava morto esse tempo todo e agora deixou de estar. E eu me pergunto: “mas e esses seis anos? Foi um erro?” e simplesmente não é explicado o que aconteceu. É como se ele estivesse deitadinho no caixãozinho dele e de repente tivesse resolvido se levantar, espanado a terra e continuado a vida. E ninguém acha isso estranho. Até eu me espanto num primeiro momento, mas logo em seguida penso: “ufa, acho que dessa vez é pra valer”- sim, porque no sonho eu tenho memória de outros sonhos desse tipo. No sonho eu sei que eu costumo sonhar com isso. E essa noite eu o abraçava e sentia o cheiro e a textura da sua pele. De tal forma que eu pensava: “dessa vez não tem como ser sonho! É verdade!”.


O outro sonho que se repete é um onde eu descubro compartimentos e cômodos inteiros na minha casa que eu não usava e sequer sabia da existência. Como se houvesse uma casa oculta dentro da minha casa (o apartamento onde eu moro aqui no Rio). No dessa noite havia uma casa inteira que eu descobria no andar de baixo e pensava: “puxa, como eu não vi isso antes?”. Às vezes são casas pra cima, casas pro lado...


Os dois sonhos são bons. Bastante parecidos. Talvez iguais. São sobre coisas estranhas que acontecem, que eu deveria saber, mas por alguma razão inexplicável eu não sei. E de repente eu tomo consciência. E o que deveria ser um susto enorme mostra-se simplesmente como um acontecimento estranho, porém agradável no final das contas. Que estranho, meu pai está vivo. Que ótimo! Que estranho, eu tenho outra casa debaixo da minha. Deixa eu montar meu escritório ali. Conhecimentos que afloram do subsolo – no caso da casa nem sempre do subsolo, mas o dessa noite foi (talvez por eu ter visto o “Cidades ocultas”, do History Channel, sobre a fundação de Budapeste).


E aí eu saí andando hoje, bem lentamente, na direção contrária que eu costumo caminhar e vi um dia tão lindo que imediatamente eu me lembrei do meu pai e das suas caminhadas pelo Aterro, da sua determinação pra fazer tudo na vida. E eu não fico triste de lembrar dele. Assim como eu fiquei muito menos triste do que eu pensava quando ele morreu. Porque na verdade ele ficou ainda mais próximo de mim. Eu não consigo olhar pras coisas e não enxergar os seus contrários. E lágrimas começaram a escorrer, misturando-se com o suor, enquanto as endorfinas insistiam em se libertar e o Marcelo Camelo falava no meu ouvido sobre um vento que entortou a flor e alguém que defendeu com golpes de pincel. Eu via o Cristo de braços abertos e a baía de Guanabara e me lembrava que eu e todas aquelas pessoas sorrindo, se exercitando, conversando estão ali provisoriamente. E ninguém sabe até quando. A qualquer momento tudo pode acabar inesperadamente. Eu vejo uma criança e enxergo a decrepitude do velho. Eu tenho momentos absolutamente lindos e mágicos e eles me doem porque eu sei que tudo é impermanência. Me lembrei de uma meditação zen-budista sobre a putrefação dos corpos, onde você mentaliza apenas isso para que você aprenda a viver o momento, que é a base do zen-budismo. Eu enxergo o Carpe Diem acoplado ao seu correlato-irmão, o Memento Mori. Lembre-se de que vai morrer. É triste e lindo. É alegre e triste (me poupem de comentários do tipo “nossa, mas que mórbida. A vida é bela!”. É exatamente sobre isso que eu estou falando. A vida é bela. E isso é...inexplicável. Indizível.


Eu sou aquela personagem do Beleza Americana, a personagem mais feliz e lúcida daquele filme, o garoto que é traficante e foi internado num hospício. Ele faz vídeos. Daí ele resolve mostrar a imagem mais linda que ele já filmou pra menina que ele está afim. E mostra um saco plástico “dançando” ao vento. E ele diz que em momentos como esse ele percebe que a vida é tão cheia de beleza, que ele tem medo que o coração dele não suporte, pois parece que vai explodir. Quando eu vi esse filme, caí em prantos nessa cena. E voltei ao cinema no dia seguinte. E a cada vez que eu assisto a esse filme é como se fosse a primeira vez. Porque a Beleza dói. E aquele cena, tão simples e singela de um saco rodando num dia de ventania, conseguiu traduzir tudo que eu sinto.


Talvez isso seja o raciocínio de nós, pessoas neuróticas. Talvez nós sejamos mais lúcidos que o resto. Enfim. Não se escolhe.


Tudo que existe, só existe enquanto em contradição, impregnado de seu oposto. Mortos que deixam de estar mortos. Casas duplas, escondidas.

14 comentários:

Euzinha disse...

nao gosto de td que escreve, mas certamente de td do modo como escreve.
esse post foi simplesmente perfeito!
me identifico pra caramba c seus textos. fico citando pros meus amigos durante a semana, mando links do seu blog pra eles no orkut, no e mail, enfim, tb quero q eles vejam um pco o mundo por esse lado. um beijo e qdo tiver tempo e quiser papear no msn, estamos ae... (pri.matayoshi@gmail.com)

Carrie, a Estranha disse...

Oi! Legal, Pri! Muito obrigada pelos elogios. Vou te add.

Posso perguntar de curiosidade? O q eu escrevo q vc não gosta?

Bjs

Anônimo disse...

Um dos sonhos mais recorrentes que eu tenho é assim: me vejo andando por lugares grandes e fechados descobrindo cômodos, passagens, salões, nichos... Meu meu tem uma interpretação que eu gosto (porque é lisonjeira, vá). "É a sua mente", ele diz. "Ela é cheia de coisas, coisas que você ainda tem pra descobrir." No seu sonho, esses compartimentos já estavam dentro da sua casa. Ou seja... É por isso que sonhar é bom. Sonhar de sonho dormido muito mais que do acordado.

Anônimo disse...

Carrie, achei bem curioso o sonho que você tem com seu pai, mas não sei o que pode significar, talvez que ele nunca tenha morrido na sua memória? bom, eu sei que sonhar com casa representa nós mesmos, no caso você descobrir lugares novos em sua casa deve significar descobrir novas facetas suas que você ainda não conhecia e se surpreende.

*

Gostei do texto todo Carrie, muito lindo, acho que voc~e já está até cansda de escutar que escreve bem né mesmo? mas me surpreendi sobre o lance de imaginar os corpos em putrefação, pois tenho uma outra amiga virtual que perdeu a avó estes dias e ficava espantada com este tipo de pensamento, mas no fundo é bom... :-)

Beijos Garooouuuuta

Carrie, a Estranha disse...

Raposinha,

Elogios nunca são demais! ;). Obrigada.

Bel,

É exatamente isso q eu sonho. Só q com variações. Às vezes são compartimentos da minha própria casa, às vezes casas inteiras (como no sonho de ontem), às vezes casas desconhecidas que vão se abrindo e desdobrando. Exatamente isso q vc disse: nichos, passagens q surgem...

Deve ser meio q um "sonho padrão".

Bjs

vera maria disse...

Beleza de post, carrie, há uma inteligência pulsante no sublimes, que bom!:) acho a cena do saco voando no filme tb lindíssima, sempre me perguntei se o diretor filmou ao acaso qdo viu aquilo acontecendo, não pôde se furtar àquela poesia andando, maravilha pura, e incorporou ao filme, não sei.
um abraço,
clara lopez

Anônimo disse...

Carrie,
Adorei este post sobre os sonhos e sobre o filme Beleza Americana.
Quando li sobre este sonho com seu pai fiquei pensando em meu irmão, que perdi há 4 anos e com quem não sonho nunca, mas que gostaria desesperadamente de sonhar. E quem sabe como vc, por alguns minutos acreditar que ele está vivo e poder abraçá-lo de novo...
Sonho sempre com casas também, mas nunca são minhas e estão em ruínas, sem saída. Não tenho idéia do que quer dizer...
No mais, sou sua fã girl, vc escreve muito bem!! uma delícia na verdade!
Teu blog é o meu favorito de longe...
bjs,
Dalila da Silva

julieporto disse...

meu pai morreu há uns 15 anos. sempre sonho com ele desse jeito "não morrido" exatamente como vc falou.
e sempre choro, mas é um chôro tão bom...
post mais lindo, obrigada, viu?

Carrie, a Estranha disse...

Clara,

Muito obrigada pelas gentis palavras.

Dalila,

Minha mãe raramente sonha com o meu pai. E mesmo assim só começou a sonhar muito depois. Não sei se é um bloqueio, uma defesa...

Muito obrigada pelos elogios. Fico muito feliz qdo um novo leitor comenta - os "velhos" tb, hehehehe...

Julie,

(Suspiro).

Obrigada vc, minha lindinha.

Bjs

Anônimo disse...

Carrie,
Obrigada e quem sabe um dia então...
mil beijos

Ana Manga disse...

De neurótica pra neurótica, cara, às vezes eu fico com vontade de te mandar um envelope cheio de silêncio. Mas desses silêncios que vc tivesse que parar e levar um tempo pra ouvir E esse tempo ia te fazer tomar consciência da minha existência. E vc ia sentir sem entenderque tem uma pessoa no mundo que de vez em quando te lê e treme. Ou sorri. Ou - que clichê recorrente - se identifica. Seja porque eu formei em jornalismo, porque faço regimes, porque tô escrevendo uma tese de doutorado no momento ou porque acho o Suzanão de reitora da novela o ó.

Eu te gosto muito, Carrie. Um dia - profético - eu ainda vou sair do subsolo e a gente vai ser amiga, mesmo que de longe. Uma amizade epistolar, bem preto e branco.

Bjo.

Anônimo disse...

Carrie,
Entrei aqui via terapia zero!
E desde seu encontro com a anna que rendeu um post, estou silenciosamente lendo voce!
Hoje porém, decidi comentar pois achei o texto emocionante...
Também já perdi meu pai e sempre sonho com ele e esses sonhos nunca me causaram sofrimento, na verdade eles matam um pouco da saudade, pois já fazem 17 anos que ele partiu!
Mas gostei também da reflexão sobre a dicotomia morte e vida que afinal é isso mesmo, "para morrer basta estar vivo" embora nunca pense sobre isso, a realidade é essa e não tem que ser boa ou ruim, a vida é assim!

Euzinha disse...

Carrie, o q quis dizer eh q temos opiniões diferentes sobre alguns (poucos) assuntos, mas independente disso eu adoro o seu jeito de escrever.

Fãs clamam pela publicação de um livro, hein...

Beijo!

Carrie, a Estranha disse...

Liliane,

Obrigada! Que bom q vc comentou. Esse tipo de saudade é muito injusto. Não tem como matar. Só provisoriamente.

Pri,

É q eu sou curiosa! Hahahaha...
Fala isso pra alguma editora! Hahahahaha

Bjs