quarta-feira, agosto 15, 2007

Brincando de adulto


Já contei aqui o caso em que Lacan (o “pai” da psicanálise juntamente a Freud), já no final da vida, cutuca a sua vizinha de mesa e diz: “na verdade eu tenho cinco anos”. O que para muitos pode apresentar um sintoma de quase senilidade do velho para mim tem bastante significado e é absolutamente dotado de lógica. Porque em certas coisas – e eu me pergunto se não são nas que realmente importam – continuamos crianças, entre três e sete anos. Isso às vezes é bom. Às vezes é terrível.

Há diversos setores da nossa vida que podem se manter infantilizados. O paladar, por exemplo. Há adultos que permanecem com o gosto de criança. Não toleram álcool, gostam de coisas molinhas e docinhas. Ou batata frita e sanduíche. Comida de criança. Já vi o Jô Soares falar algo parecido: que o gordo é alguém cujo paladar não cresceu. É possível. Alguns tipos de gordos, pelo menos.

Outro tipo de infantilização na idade adulta é uma certa dependência emocional que mantemos com nossa família e amigos mais próximos, que nos faz temer a separação, ainda que temporária, de forma quase irracional. Tudo bem, todos nós gostamos de manter pessoas queridas ao nosso redor, mas temer uma temporada longe de seus entes queridos, recusar um emprego só porque ele fica em outra cidade ou não querer morar fora da casa dos pais me lembra quando eu era criança e chorava pra ir pra escola. Na minha cabeça aquelas cinco horas que eu passaria ali seriam dolorosas demais, mesmo já compreendendo que meus pais me pegariam ao final do dia. Era como se algo no meu idílico recanto caseiro tivesse se quebrado pra sempre. Como Eva, eu provei do fruto do conhecimento e me foi negado o paraíso.

(Aqui abro um parênteses para uma história: certa vez, eu devia ter uns 7 anos eu acho, fui dormir na casa de duas vizinhas minhas que eram gêmeas. Depois das brincadeiras, quando apagamos a luz e fomos dormir, eu senti uma súbita e acachapante tristeza, uma saudade dos meus pais avassaladora, que foi crescendo e me levando a um estado desesperador. Tive que acordar a babá delas e pedir pra que me levasse de volta pra casa. Como explicar racionalmente uma saudade de pessoas com quem eu estava até poucas horas antes e com quem estaria algumas horas depois e que se encontravam nem a cinqüenta metros de mim? Impossível. Ainda guardo a sensação de conforto quando enfim pude deitar na minha cama em casa. Sim eu era uma criança estranha. Continuo, aliás. As duas coisas. Hoje até moro sozinha, mas ainda me pego às vezes com saudade dos meus objetos. De como eles ficam solitários sem mim).

Outro tipo de infantilidade, talvez uma das mais comuns, é na área dos relacionamentos amorosos. Em geral as mulheres culpam os homens de infantilidade, mas essa característica não escolhe gênero. O ideal de amor romântico que infelizmente ainda vigora na nossa sociedade é egoísta, ingênuo, birrento e possessivo. Fazemos manha pra termos nossos desejos atendidos. Quando isso não ocorre há beicinhos e outros tipos de retaliações. Claro que evoluímos no beicinho. Ele não é tão óbvio hoje em dia, mas ainda permanece.

Há pessoas que têm uma total incapacidade para a vida prática. Pagar contas em dia, administrar uma casa, ter compromissos, prazos...gerir uma vida adulta.

Pra não dizer que não falei de flores, há também qualidades que conservamos A mais importante é a qualidade de brincar. A criança brinca com seriedade. Enquanto ela é o monstro, ou está montando seu jogo sua atenção está totalmente ligada naquilo. Nada existe fora do seu mundo. Mas ao mesmo tempo ela pode desmanchar isso de uma hora pra outra e não pensar mais no assunto – nenhuma criança perde o sono pensando em como solucionar o seu Lego ou em novas roupas para a sua Barbie. No fundo ela sabe que é só uma brincadeira. Ainda que leve extremamente a sério. Não por acaso o verbo em inglês que significa “interpretar” é o mesmo que “brincar”: “to play”. Pois esse é o ideal de todo ator: ser aquela personagem, naquele momento, com um misto de seriedade e descompromisso. E depois deixar ela lá – onde for, no reino das coisas encantadas.

O que também me lembra a atenção correta que os budistas pregam. Fazer cada pequena atividade do dia a dia - lavar louça, tomar banho, estudar, malhar – focada somente naquele instante, como se aquilo importasse por si só. Esvaziar a mente sem pensar no que você precisa fazer depois que terminar a tarefa. Viver o instante. Carpe diem.

Minha irmã Vivi quando era criança dava aula para as bonecas dela. Tinha uma escolinha na área onde ela batia ponto de uma da tarde às cinco. Com diário e tudo. Meu irmão tinha uma fazendinha montada no quarto. Ele acordava as seis da manhã e ia tirar leite. Minha irmã fez Letras e deu aula durante dez anos – depois cansou. Meu irmão foi fazer agronomia, mas desistiu com um semestre. É que às vezes a brincadeira fica chata. E crianças não insistem em brincadeiras chatas. Se tá chato ela tenta outra.

Eu não compactuo com a visão de que crianças são pessoas puras e boas e a infância é um período dourado. Crianças são adultos em miniatura. Piorados. Adultos mal acabados, mas que, como expus no parágrafo anterior, ainda não têm certos vícios mofados dos adultos. Minha infância foi difícil, não porque me aconteceram coisas difíceis, mas porque é difícil encarar o mundo pela primeira vez. Ainda mais quando se é uma criança estranha. E eu ainda não sabia que todos nós somos.

Eu tenho um primo que não bebia água na infância. Não bebia. Só tomava chá. Água pra ele era um tremendo esforço. E ele tinha que fingir na hora do recreio, depois do futebol, quando todas as crianças se enfileiravam, barulhentas, no bebedouro, que ele também bebia água. Ele entrava na fila só pra fingir que bebia. Porque ele queria se sentir igual às outras crianças. Mas não era. Porque ninguém é. Só que a gente passa a vida tentando ser.

Eu sei o que vocês estão pensando: que a minha família só tem louco (tenho outro primo que odeia doce desde pequeno e tudo que lembre o gosto adocicado. Até tomate e pão de hamburguer). É verdade. A informação procede. Ou talvez falemos mais do que os outros.

O fato é que, aos 30 anos de idade cada vez mais eu me pego com 03 anos. Medos infantis, muitos medos infantis, vontade de sair correndo pulando só nas pedras pretas da calçada, contar estrela no céu e fazer cabaninha no meio da sala comendo leite condensado com toddy ouvindo história de fantasma. Mas a gente tem que crescer, né? Algumas características infantis não pegam bem pra uma mulher de trinta anos. Algumas eu realmente não gosto.

Me lembro do meu pai, que quanto mais se aproximou do seu final, cada vez mais se aproximou também do seu início: sua infância. Quem o conheceu nos últimos anos, sempre brincalhão não acredita que ele pudesse ter sido sério algum dia. Talvez seja isso a vida. A gente cresce e descobre que tudo aquilo que precisava saber sempre esteve ali. Tudo que queríamos sempre foram novas brincadeiras.

6 comentários:

Anônimo disse...

Adorei o texto!

Bom, sou um pouco mais nova (19), mas tem alguns gostos que continuam os mesmos. Sempre adorei assistir desenho animado, tanto que assisto até hoje e ainda dou risada das mesmas piadas. Tem gente que acha estranho, diz que é coisa de criança. Eles não sabem o que estão perdendo.

Eu tive uma experiência similar a do seu irmão. Pelo fato de gostar de desenho, cismei de fazer Desenho Industrial. Pulei fora logo no começo. Ainda não achei um caminho para seguir, mas uma hora eu chego lá.

Abraços

Anônimo disse...

Eu tb sentia uma saudade absurda dos meus pais e não dormia fora de jeito nenhum. Lembro bem da primeira tentativa, na casa das minhas primas. Tava super no clima, brincando de boneca... Daí minha mãe chamou pra ir embora (sempre na melhor parte da brincadeira!) e eu fiquei pra dormir lá. Qdo as luzes apagaram e o silêncio chegou, comecei a me lembrar do meu pai contando histórias pra dormir. Caí no choro... :D

anouska disse...

amigam, adorei o tema, mas volto pra ler com calma depois. tô correndo porque o selviço aqui tá brabo. [dona empregada me deixou na mão hoje].

[off-topic: indiquei teu blog pra um 'prêmio' que anda rolando aí na blogosfera. seja boazinha e vá ler o regulamento lá no meu galinheiro. bjs]

Carrie, a Estranha disse...

Clis!

Hahahaha...prêmio, Eu? Fico honrada, mas tenho vergonha...

bj

anouska disse...

texto lindo, lindo.

"Eu não compactuo com a visão de que crianças são pessoas puras e boas e a infância é um período dourado"

nem eu. aliás, acho que hobbes também não, hehehe. bjs

Anônimo disse...

muito legal mesmo seu texto.