sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Sem palavras


Capa de ontem do Globo: milícias instalam portão em entrada de favela. Morador é obrigado a comprar a chave – e todos os serviços – da milícia. Qualquer semelhança com o
Gueto de Varsóvia não é mera coincidência.

Aí quando eu escrevo um texto em que o Gilberto Velho, antropólogo, compara a violência carioca ao nazismo, alguns leitores o chamaram – e me chamaram conseqüentemente – de anta.

Capa do Globo de hoje: garoto de 6 anos é arrastado 7 km preso ao cinto de segurança, durante um assalto em que a mãe não conseguiu tirá-lo do cinto e os bandidos arrancaram com o carro. Até os próprios policiais ficaram chocados com o estado do corpo.

Eu sou contra matar bandido não porque eu sou boazinha mas principalmente porque não só não adianta, como também piora a situação. As milícias são a maior prova disso.

Mas aí me dizem que eu sou uma intelectual distanciada dos problemas do povo...

É, devo ser. Realmente ir até a esquina e ver a carinha linda do João, o garoto que morreu, estampada em todos os jornais de hoje, em todas as bancas e ver as pessoas comentando em todos os lugares não faz parte da minha realidade. É muito distante de mim.

E se ser intelectual é perceber a relação entre desigualdade social, corrupção (do mais alto governante até o PM que aceita suborno – e com o salário que ele ganha, é difícil não aceitar) e violência, oquei, eu sou intelectual. Se pareço arrogante é porque acho que é muita ignorância quem não consegue perceber que esses problemas vêm todos juntos, em cascata, há séculos sendo gerados nesse país. Desculpem-me, eu realmente não tenho paciência com gente ignorante e que deseja permanecer nesse estado só pra não mudar de idéia. Ninguém tem culpa de ignorar um assunto. Todo mundo ignora certos assuntos, mas diante dos fatos continuar ignorando que enfiar a porrada nos bandidos – e só isso – vai adiantar alguma coisa só sendo imbecil. A não ser quem também leva algum com essa história toda.

Recebi um e-mail me convidando a sair de branco domingo com uma fita vermelha no pulso esquerdo. Respeito esse tipo de reação, mas não é a minha praia. Não vou sair de branco pra expurgar a minha culpa e tristeza por viver numa bosta de um país como o nosso e ficar um pouquinho mais calma, voltando pra casa achando que eu fiz a minha parte. É preciso deixar o ódio crescer. Infelizmente será preciso que cada cidadão tenha perdido alguém nessa guerra para quem sabe comecemos a pensar em algo. A ver que cada pequeno ato como votar, subornar guarda ou desviar dinheiro público alimenta tudo isso.


Vamos tomar uma Skol e aproveitar o verão que a gente vai contar pros nossos netos (se eles sobreviverem). Vamos pular carnaval, afinal a vida continua. Vamos sair na capa de Caras. Vamos ver a Juliana Paes dizer como emagreceu mais sei lá quantos quilos e depois achar um absurdo quando garotas morrem de anorexia. Vamos celebrar todas as celebridades instantâneas. E vamos continuar achando que nenhuma dessas coisas estão interligadas. Quem sabe se tudo piorar a um grau muito pior do que os nossos piores pesadelos a coisa comece a ter que melhorar porque simplesmente não tem mais pra onde ir – e como o mundo é redondo e não há mal que sempre dure e nem bem que só perdure um dia essa bosta muda até por falta de opção. Até lá, vamos ser imbecis. Todos juntos. Vamos lá.



Vamos celebrar a estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões
Vamos celebrar a estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso estado que não é nação
Celebrar a juventude sem escolas
Crianças mortas
Celebrar nossa desunião
Vamos celebrar eros e thanatos
Persephone e hades
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade
Vamos comemorar como idiotas
A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta de hospitais
Vamos celebrar nossa justiça
A ganância e a difamação
Vamos celebrar os preconceitos
O voto dos analfabetos
Comemorar a água podre
E todos os impostos
Queimadas, mentiras e seqüestros
Nosso castelo de cartas marcadas
O trabalho escravo
Nosso pequeno universo
Toda a hipocrisia e toda a afetação
Todo roubo e toda a indiferença
Vamos celebrar epidemias:
É a festa da torcida campeã
Vamos celebrar a fome
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar um coração
Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado de absurdos gloriosos
Tudo que é gratuito e feio
Tudo o que é normal
Vamos cantar juntos o hino nacional
A lágrima é verdadeira
Vamos celebrar nossa saudade
E comemorar a nossa solidão
Vamos festejar a inveja
A intolerância e a incompreensão
Vamos festejar a violência
E esquecer da nossa gente
Que trabalhou honestamente a vida inteira
E agora não tem mais direito a nada
Vamos celebrar a aberração
De toda a nossa falta de bom senso
Nosso descaso por educação
Vamos celebrar o horror
De tudo isso
Com festa, velório e caixão
Está tudo morto e enterrado agora
Já que também podemos celebrar
A estupidez de quem cantou esta canção
Venha, meu coração esta com pressa
Quando a esperança está dispersa
Só a verdade me liberta
Chega de maldade e ilusão
Venha, o amor tem sempre a porta aberta
E vem chegando a primavera
Nosso futuro recomeça:
Venha que o que vem é perfeição...
(Perfeição - Renato Russo)


6 comentários:

Sérgio Mayor de Andrade disse...

Muito bom este texto. E aprecio essa tua determinação em seres intelectual, em não te juntares ao grupo dos conformistas conformados nem te associares a manifestações populistas que não provêm de sincera solidariedade, antes a uma purga da consciência colectiva.

anouska disse...

ai, carrie, essa música é de uma beleza que dói. eu vou te dizer que eu concordo com tudo isso que você tão bem escreveu, mas confesso que ontem, ao ouvir a notícia pelo rádio (e eu nem tinha vistoas fotos do garotinho ainda) senti um ódio primal me subir pela garganta e comecei a gritar todos os impropérios contra esses desgraçados e achar que até a lei de talião é boa demais pra eles. meu marido veio todo cerebral querer argumentar e eu tive que me controlar pra não despejar em cima dele... claro que a lógica do "olho por olho" não resolve nada. vão-se os bandidos fora-da-lei e vêm os bandidos "da lei". isso que é pior. eu luto pra não ser cética, mas acho que a imbecilidade humana e o não querer enxergar que tudo isso é uma imensa teia podem nos levar a um buraco ainda pior. eu penso na dor desse menininho e na dor da mãe; aí penso no meu filho e tenho vontade de chorar. muito mesmo. porque nós somos uma raça de gente muito mal-acabada e parece que pra isso não tem remédio. desculpe o longo desabafo. bjs

LuizAlmeida disse...

Carrie, eu concordo com tudo que você disse. Está dito com perfeição, como é normal quando você diz. A canção do Renato Russo é realmente um achado. Tá legal. Mas, só essa vez, eu gostaria de matar esses filhos da
Desculpe!

Anônimo disse...

Carrie,
Novamente, discordo de muita coisa do que você diz. Quando você coloca que "...a relação entre desigualdade social, corrupção (do mais alto governante até o PM que aceita suborno – e com o salário que ele ganha, é difícil não aceitar) e violência...", é novamente o erro de análise de muita gente. Os rapazes que queimaram o índio pataxo, há dez anos atrás, eram todos ricos, filhos de gente poderosa e influente em Brasília, e alegaram na defesa que estavam apenas brincando. Outros crimes neste país foram cometidos por jovens ricos, e foram crimes bárbaros. Se você levar a questão da desigualdade social para o fato da impunidade, aí sim eu vou concordar com você, posi as cadeias brasileiras estão repletas de gente pobre, favelada e negra, infelizmente, pois gente com grana contrata excelentes advogados e ou não vai presa ou fica pouquíssimo tempo. Esta é a nossa mazela, algo pior do que a miséria que existe neste país, pois é um tipo de desigualdade que se encontra inclusive à margem da econômica, mas sim provém de nossa estrutura mental de poder, elitizado mesmo, do tipo "fulano" é de boa família ou sicrano é de origem humilde.
Por isso, a correlação que você faz é frágil para explicar estes monstros que assassinaram desta forma o menininho. Naõ tenho filhos, mas imagino como quem tenha crianças está se sentindo agora. Ontem mesmo visitei uma amiga minha só para dar um abraço no filho de seis meses dela, de tão emocionado que eu estava com a brutal morte daquela criança.
Analisar da sua forma a violência como uma expressão do seu pensamento aritimético de corrupção + desigualdade social é a equação errada, que movimentos como o Viva Rio (que por sinal eu ODEIO) e políticos esquerdóides adoram postular.
Por isso, se nós que pensamos diferente somos imbecis, ao menos temos uma solução prática para isso. Eu defendo a redução da maioridade penal, a prisão perpétua com trabalhos forçados nos presídios, e, melhor ainda, uma nova Constituição onde possamos ter a pena de morte. Enquanto isso não ocorre, posi neste país os políticos nunca vão querer se mexer para isso, fico feliz da vida quando leio nos jornais que a polícia matou cinco, dez, vinte e até 119 numa rebelião qualquer.
Recentemente a Ellen Gracie sofreu um assalto na linha vermelha quando veio ao Rio. Eu teria adorado que ela tivesse levado um tiro na cabeça, posi quem sabe assim algo viesse a ser feito?
Por fim, não sei se cabe aqui, mas peço-lhe desculpas se em algum momento eu a ofendi, e lamento por ter feito isso. Gosto de frequentar o seu Blog, pois além de muito inteligente, os seus textos são também muito divertidos e por isso você tem um dos melhores blogs que ja vi.

Carrie, a Estranha disse...

Cris e Mandrake,

Sim, claro, somos humanos e concordo q dá vontade de matar uns putos desses. Ainda mais com essa declaração de q aquilo "era um boneco de judas". Q levassem o moleque junto, né? Com certeza, concordo com tudo o q vcs dizem. É difícil manter a calma o tempo todo. Mas sinceramente? Eu tenho muito, mas muito mais ódio de quem pode mudar tudo isso e não muda. Governantes. Autoridades. Esses eu tenho vontade de arrastar uns 20km pendurado no meio fio.

Carrie, a Estranha disse...

No párachoque, quis dizer.