domingo, janeiro 14, 2007

M.A.T.E.- M.E.



Não acreditei quando cheguei na Barra. Todo mundo sempre fala que essa faculdade parece um shopping center, mas não imaginei que fosse tanto. Mesmo com parte do prédio destruído dava pra ver. Pra começar umas estátuas, completamente sem sentido. Projeto “Estátuas vivas”. As estátuas interagem com o público, sacou? Quase pedi informação a uma estátua de um guarda. Algumas eram medonhas, horripilantes: uma mulata de bunda descomunal, debruçada no parapeito de um dos corredores, um pássaro roxo parado do pátio da cantina, de asas abertas. Dalí é clean perto dessa galera. Depois não querem que a gente diga que a Barra é um bairro cafona. Como se não bastasse, a faculdade tinha um caminho que a ligava ao maior shopping center da Barra. Quer dizer, já que é tudo um grande comércio, mesmo, por que não deixar isso bem claro de uma vez? Os caras já têm campus até no Chile e em Miami, como vim a saber mais tarde (o que, aliás, corrobora para minha hipótese de que isso é lavagem de dinheiro do narcotráfico).
A confusão de ambulâncias, redes de TV e pessoas querendo saber sobre parentes que estudavam ou trabalhavam ali era enorme. Cordões de isolamento foram colocados. Tive que mostrar minha identidade de policial para entrar.
Detetive Freitas. 13° DP de Copacana. Destacado para essa missão devido a minha experiência com, digamos, terroristas. Bom, na verdade só tinha ajudado em um caso de moleques botando uma bomba em um colégio. Só porque eu não saio dando porrada e vivo com algum livro acham que eu sirvo pra ações “de inteligência” (como se existisse ação em que o policial pode ser burro). O que havia ocorrido naquela faculdade era muito, muito diferente. Um atentado a bomba, em plena semana de provas, que havia matado metade dos alunos e professores e destruído quase tudo.
O segurança do local abriu caminho e me levou ao encontro de uma das diretoras – a que tinha sobrevivido. A mulher não soube dar muitas informações valiosas. Estava em estado de choque. Dizia coisas desconexas. Achei que seria mais proveitoso andar um pouco pelo local. A faculdade ficava dentro de um centro empresarial que também havia sido interditado após o atentado. A maioria das lojas já estava fechada, mas ainda consegui encontrar uma aberta. Ao debruçar no balcão, pedindo um café forte e puro, notei uma bela mulher, que não sabia ao certo se era aluna ou professora. Ela tinha maçãs do rosto salientes, usava óculos, era magra, alta e o cabelo escuro cobria parte do seu rosto a todo o momento, fazendo com que ela o retirasse com um delicioso gesto delicado. Resolvi puxar conversa. A mulher lia um livro de E.P. Thompson, historiador inglês que tinha vários livros sobre o século XVIII e parecia absolutamente alheia ao caos a alguns metros dali. Ela lia particularmente o “Senhores e Caçadores”, sobre a origem da Lei Negra nas florestas da Inglaterra. Por acaso já tinha lido vários livros dele e por isso achei que seria uma boa começar dizendo algo inteligente sobre ele.
Você imagina o Thompson dando aula num lugar como este?­ – mandei, confiante.
Ela fechou o livro e abriu um largo sorriso, lindo, luminoso. Não. Imagino ele ao lado dos caras que fizeram isso.
Já gostei dela.
Você dá aula aqui há quanto tempo? – indaguei.
Cinco anos.
Isso tudo? Por que não foi fazer algo melhor da vida? – mandei, novamente.
Pois é. Nosso governo parece não gostar muito da educação. Acabou com as universidades públicas. Concurso tá cada vez mais difícil. E as particulares viraram isso. Não me surpreende esse ataque terrorista. Pra mim ele vai ser o primeiro de vários. Mais cedo ou mais tarde isso ia acontecer. Não dá pra enganar tanta gente tanto tempo.
Como assim? - perguntei.
Você faz idéia de como é trabalhar num lugar destes? Posso te contar que nesses 5 anos já fui: ameaçada de morte por alunos, tive o pneu do meu carro furado, fui ameaçada de demissão se eu não aprovasse o aluno X ou Y e já ouvi as piores besteiras que um ser humano pode ouvir. Ah, isso sem contar as cantadas, as piadinhas e o estresse que é dar aula pra um bando de marmanjo mal educado.
Nossa, tão ruim assim? – disse, imaginando que se eu tivesse uma professora gostosa como aquela eu também faria piadinhas e passaria cantadas nela.
Pior. Bem pior. Aliás a primeira coisa que eu descobri quando cheguei aqui foi que aqueles clichês sobre analfabetos que passam no vestibular e que é só “pagar e passar” são a mais absoluta verdade. Um dia uma garota perguntou se a Idade Média vinha antes ou depois de Cristo! As pessoas acham que isso é uma piada, ou que estou exagerando. Agora eu me pergunto: um ser humano desse tinha condição de estar numa universidade? E os caras ainda são cara de pau o suficiente pra falar que eles promovem a verdadeira inclusão social, pois aprovam pessoas que não passariam em um faculdade pública e depois dão alguns descontos – ou fazem os caras trabalharem ali mesmo, permutando salários por bolsas. Na verdade aconteceram coisas muito piores. Bom, mas acho que já falei demais. Agora mesmo vou ser considerada suspeita.
Como você soube que eu era policial?
Simples: se fosse professor eu conheceria e hoje não tá entrando ninguém a não ser a polícia...
Eu poderia ser um aluno. Você não tem alunos da minha idade?
Tenho, claro. Até mais velhos. Mas se você fosse aluno estaria mais nervoso com tudo que aconteceu. Além disso, nenhum deles saberia quem é Thompson. Se bem que nenhum policial também saberia.
Não me falou o seu nome...
Ana.
Detetive Freitas. Mário Freitas.
Meu celular toca. Merda.
Positivo, chefe. Já vou – desligo.
Parece que acharam um tal “manifesto” do grupo em questão. Vou lá ver do que se trata. Foi um prazer.
Igualmente, “seu” polícia – diabos, ela tinha aquele senso de humor que me fazia apaixonar de cara.
Enquanto fui entrando na universidade fui percebendo outro traço da decoração que eu não posso deixar de dizer: painéis (eu nem sei se posso chamar aquilo de quadro) feito pelo dono geral (soube também mais tarde), onde podem ser vistos trocadilhos infames com nomes de artistas da música popular brasileira. Exemplo: Rit Ali; Wil Son Si Monal (esse, nem trocadilho tem). Isso tudo era escrito com letras coloridas e colocadas para “enfeitar” as salas dos professores e corredores. Bizarro. Pensei em dar algumas sugestões: Car Alho. O desenho podia ser um caralho com rodinhas e uns alhos em volta. Ou um alho em formato de caralho ou vice versa.
Mais tarde um outro professor me contou que o mais bizarro nesse quesito decoração foi o que ocorreu quando tentaram colocar a estátua do clássico personagem de Monteiro Lobato, o Burro Falante, na entrada da universidade. Os alunos protestaram dizendo que “todo mundo ia pensar que só quem estuda ali era burro”. A estátua desceu para a biblioteca, que fica no subsolo (e que é pouquíssimo visitada). Mas aí seria pedir demais. Se eles não sabem onde fica a Idade Média, conhecer Monteiro Lobato deve ser um pouco demais. No mínimo eles acham que o Sítio do Picapau é um programa feito pela Globo. Daí se sentirem ofendidos. Vocês sabem: “em casa de enforcado, não se fala em corda”.
Cheguei no que restou da sala da diretora histérica que dizia que fora encontrado no shopping ao lado um manifesto. Os autores assumiam o tal atentado e faziam ameaças. Segue o manifesto na íntegra:

Não vendemos o nosso peixe. Ensinamos a pescar.

Após séculos a humanidade conseguiu chegar a um nível de progresso material e intelectual nunca vistos dantes. Paradoxalmente, todas as grandes invenções da humanidade são utilizadas para a degeneração da raça humana. Assim como Adorno e Horkheimer haviam proposto em seu brilhante artigo “A dialética do esclarecimento” de 1947, nossa era carrega o peso do germe da destruição. Somo Faustos, sempre a destruir com nossa Razão os feitos desta mesma Razão. Ou, como diria Marx, vivemos em uma era em que “Tudo que é sólido desmancha no ar. Tudo que é sagrado é profanado”. Mas é da destruição que emergirá a salvação.
Intitulamo-nos Milícia Anarco-Terrorista contra a Mcdonaldização da Educação. Vocês, com suas sedes supermodernas, cheias de garotas de programa bombadas malhadas e garotões surfistas pit-boys traficantezinhos de classe média acharam que poderiam ficar impunes até quando? Acharam que podiam despejar nessa entidade quase abstrata a quem chamam de “mercado” hordas de profissionais que não sabem se a Idade Média fica antes ou depois de Cristo?
Nossas exigências:

1) Que nenhuma nova franquia, unidade ou filial seja estabelecida em lugar algum deste país ou mundo. Parem a expansão já!
2) Desativem todas as filiais que funcionam dentro de shopping centers. Não somos feirantes. Nosso produto não é peixe nem calça jeans.
3) Vestibular mais rigoroso. Façam apenas uma prova de redação e uma sobre um livro a escolher. Qualquer livro. Quem conseguir escrever de forma a ser compreendido, sem cometer erros como “Faser” e “esplicassão” entra.
4) Sem reuniões cretinas no início do ano para os professores. Palavras como “equipe” e expressões metafóricas de “vestir a camisa” ficam proibidas em tais eventos. O mesmo para o uso de palavras em inglês como “speech” e “break”. Qual o problema com “discurso, fala” e “intervalo, pausa”? Máximo de 3 usos de palavras em língua estrangeira por reunião.
5) Abaixo demissões de professores doutores porque são mais “caros” para a universidade.
6) Direito do professor à reprovação da metade da turma sem retaliações por parte da direção. O professor é soberano na tarefa de reprovar.
7) O professor pode dar quantos textos quiser por aula e cobrar quantos textos quiser por prova sem ouvir queixas da coordenação.
8) A coordenação deve ignorar todo tipo de reclamação estudantil que se basear em excesso de cobrança por parte do professor. Este é soberano na tarefa de ensinar como bem entende. Se não confiam no professor, façam uma seleção mais rigorosa na hora de contratar.
9) Substituição das “feiras de moda” por “feiras de livros”. Universidade não é shopping. É lugar de estudo.
10) Incentivar concursos literários, concursos de bandas e festivais de teatro e poesia.

O não cumprimento e o desrespeito de qualquer uma dessas reivindicações será respondido nos moldes da ação de hoje. Inocentes não serão poupados. Ou melhor, não há inocentes.
Somos poucos, mas estamos em todos os lugares. Somos professores, ex-professores, deste estabelecimento ou não; ex-alunos e até alunos que simplesmente se cansaram de ver a educação ser tratada como lixo nesse país. Nossa ação começou por vocês, mas todos serão atingidos. Somos invisíveis, por isso nunca seremos pegos.

Educação gratuita e de qualidade pra todos! Abaixo as universidades-McDonalds, templos profanos do consumismo e da burrice!

Milícia Anarco-Terrorista contra a Mcdonaldização da Educação.
MATE-ME
Rio de Janeiro, 28 de outubro de 2010.

Algo naquele discurso me lembrara a minha conversa com Ana. Corri pra o bar onde a encontrei pela primeira vez e só achei o livro do Thompson, no balcão. Caminhava folheando-o em direção à saída. Abri em uma página marcada, do primeiro capítulo, sobre a Floresta de Windsor e os crimes na Inglaterra do século XVIII. O trecho falava sobre invasões à propriedade dos nobres – e quase toda floresta era propriedade dos nobres no século XVIII – por parte da plebe, oprimida por leis cada vez mais severas que restringiam suas propriedades:

Catorze homens a cavalo, armados com espingardas, acompanhados de dois homens a pé e um galgo, tinham perseguido veados à noitinha, no Caminho de Bisghot, com os rostos pintados de preto, e alguns “com chapéus de palha e outros trajes disformes”. Foram abatidos quatro cervos e um guarda sofreu ameaças. (...) Andavam armados, irrompiam em florestas e parques, matavam e levavam cervos, libertavam os delinqüentes das mãos dos meirinhos, enviavam cartas intimidadoras a fidalgos, exigindo veação
[1] e dinheiro, e ameaçavam assassinatos ou incêndios a casas, celeiros e medas de feno. Tinham agredido pessoas, “atirando nelas em suas casas, mutilado seus cavalos e reses, destruído seus portões e cercas, derrubado aléias, plantações e cabeceiras de lagos piscosos, e roubado seus peixes”.

Quando levantei os olhos, já estava saindo do centro empresarial, já na Avenida das Américas. Achei ter visto Ana entrar em uma Blazer preta, com insulfilme e sumir em direção à zona sul. Ela parecia sorrir pra mim.
[1] Veação: carne de animais mortos na caça.

Um comentário:

Anônimo disse...

muito bom!

[como será que eu faço para me filiar ao movimento?]