domingo, janeiro 14, 2007

Inventário da fauna teatral carioca



Eu e mais três ou quatro acompanhávamos os nem tão fluidos movimentos de braços de Luana – certamente ela sabia que era observada - enquanto o resto do G.R.U.P.O. (Gente Realmente Unida Para Objetivar. Ãhn, ãhn, pegaram?) fazia uma pausa para o café. O nome foi idéia de Sabrina, que gostava de coisas realmente práticas. Sabrina, namorada de Armando.
Armando. Homem de poucas, mas (na sua percepção pelo menos) contundentes palavras. Cabelos articuladamente desalinhados, barba estrategicamente por fazer e roupas que misturavam três defeitos intoleráveis num homem: hiponguice, cabecisse e falta de dinheiro. Juntos formavam o par perfeito. John Lennon e Yoko Onno (sendo que os dois faziam o papel da Yoko).
Já não sabia mais o que pensar sobre Sabrina. Minhas opiniões já variaram bastante ao longo dos dez anos separam nosso primeiro encontro de hoje. Quando eu vi Sabrina pela primeira vez acreditei estar perto da visão do Éden. Vinte e dois anos, um corpo perfeito, na medida exata: nem magra demais, nem gorda demais, nem musculosa demais; tudo exalava harmonia em Sabrina. Cabelos castanhos claros, brilhantes como só aos 22 anos se pode ter cabelos tão brilhantes. Olhos de um azul profundo. Sorriso encantador, pele de pêssego e todos os estereótipos possíveis. Ela foi a responsável por me apresentar a Armando e a me trazer ao G.R.U.P.O. Freqüentamos a escola de teatro juntos – ela nunca quis nada comigo, pois já tinha sucumbido ao babaca do Armando – e nos reencontramos num curso de máscaras balinesas, há seis meses atrás. Quase caí de costas quando a revi. Ela estava gorda, resultado dos dois filhos que tivera com Armando, com a pele manchada, os dentes enegrecidos pelo fumo, os cabelos pintados de loiro, sempre com as raízes aparecendo. Sem contar um eterno ar de tensão, coroado por duas auréolas roxas ao redor dos olhos - bem diferente da Sabrina tão fresca que eu conheci dez anos atrás. Foi um dos maiores choques da minha existência. Só mais tarde, ao perceber o relacionamento entre ela e Armando, pude perceber o motivo de tanta amargura. Sabrina me falou dessa “cooperativa de atores” que estava sendo montada por Armando e me perguntou se eu não queria participar. Fui sem nem saber ao certo porquê. Talvez por pena dela. Curiosidade. Falta de opção. Ou talvez simplesmente porque não tinha nada de mais interessante para fazer. Mais um grupelho menos um grupelho na minha vida não iria alterar em nada.
Diferindo apenas de endereço, com uma ou outra alteração, os personagens eram quase sempre os mesmos, sejam em quais grupos fossem. Grupos de quê? Cooperativas de cinema, companhias teatrais, organizações voltadas para realização de eventos culturais, projetos para ocupar locais não ocupados com instalações de artes plásticas, equipes interessadas na revitalização de alguma parte desvitalizada da cidade, festivais de esquetes, oficinas para seleção de atores para espetáculo experimental em Gramacho, teatro-dança com crianças excepcionais da vila do Jacaré Pequeno, qualquer coisa que pudesse lhe dar alguma chance de ser um artista.
Meu nome é Isaac. Trinta e dois anos, duas faculdades, um curso de teatro, um de música, fora cursinhos de roteiro, pintura em óleo sobre corpo nu, produção de espetáculo, contadores de estórias, cenário em papel machê e muitos outros. Grupos de trocadilhos como: Artemanha, Pintando os Sete, Ar-tesão, Cine-a-mão, Ator-mentado – os trocadilhos deveriam ser regulados por um código próprio, assim como o de trânsito, sob pena de chibatadas em praça pública para quem os infringisse –, casarões em Santa Tereza, gravações em Niterói e reuniões em Jacarepaguá. Minha família diz que eu “mexo com teatro”. Odeio isso. Por que quem faz medicina, odonto, direito não “mexe com medicina”, “mexe com odonto”? Mas teatro, música, essas profissões a pessoa “mexe”. Coisa horrível, parecia coisa de “mexe com droga”, “mexe com interceptação de veículo roubado”. “Mexer” não pode ser atividade digna de nada, a não ser que envolva culinária, feitiçaria ou dança. Pior: quando diziam que eu era “meio artista”. Tipo, a metade dele tá comprometida, mas o resto ainda tem salvação.
O fundo do poço ainda é raso quando se habita o submundo das artes. Mas como todo viciado, não consigo largar. Continuo indo a reuniões daquele tipo, mesmo sabendo onde iam dar: lugar nenhum. Na verdade essas reuniões são ao mesmo tempo a droga e o tratamento. Uma espécie de AA das artes. As pessoas achavam que estavam fazendo algo de produtivo, porque se reuniam em grupos, mas isso era apenas um paliativo. Um alento. Um “pelo menos tô fazendo alguma coisa”.
Olhando as pessoas em sua volta, penso em quantas Sabrinas e quantos Armandos encontrei na vida. Todo grupo tem seu líder carismático e temperamental e braço direito pateta e moderado. Ou vice-versa. Às vezes uma só pessoa acumulava todas essas características, mas não era comum. Outra figura recorrente era a Amiga, também conhecida como Deixa-disso. A Amiga é aquela que está sempre prestes a ajudar todos, tem um amigo músico que tá precisando de uma “força” pra começar e pode contribuir pra equipe. Ela sempre acalma os ânimos e acha “tudo válido, desde que todos concordem” (mas que na prática se resume em “no meu cu, não!”).
Tinha também o Entusiasmado. O tipo Entusiasmado podia ser encontrado sob as variações de: A) Completo imbecil e B) Viadinho. O entusiasmado do tipo A é aquele que quer fazer tudo, mas não tem a menor noção de nada. Não atrapalha, o que nesses casos já ajuda muito. O entusiasmado do tipo B é aquele viado - espiritualmente falando e não em relação a opção sexual (embora coincidam com freqüência). É aquele que acha tudo lindo, bárbaro e mágico, mas está sempre com problemas com uma pessoa que não se decide sobre o relacionamento e isso traz transtornos sérios para o trabalho do grupo. Em geral abandona o projeto uma semana antes da estréia porque precisa aprender a gostar de si mesmo e não quer mais atrapalhar os outros.
Outro tipo importante a ser definido é o Cabeça. Aquele que trancou três faculdades (Letras, Filosofia e Direito – pressão familiar, esta última), diz que lê muito, mas sempre acaba errando uma concordância ou confundindo Baudelaire com Baudrillard e ainda dá desculpa que é porque dormiu às 6 da manhã escrevendo uma idéia pra um roteiro (esse tipo de gente sempre tem idéias para roteiros).
E o pior de tudo: na maioria das vezes uma só pessoa poderia congregar vários tipos em si mesma.
Não é que não existam pessoas legais nesse meio. Eu só nunca conehci nenhuma. E não é que eu sou melhor do que todo mundo. Mesmo porque se eu realmente fosse, não estaria ali. Eu simplesmente enxergo que o Rei está nu.
De repente Martinha, voltando do café, dispara: Gente, vamo retomar?
É sumariamente ignorada por todos que ainda tomam café, comem biscoitos, riem, vão ao banheiro, falam ao celular.
Pessoas?! Alou, alou!! Vamo lá gente?? – ela insiste.
Fico com pena, resolvo levantar e chamar o pessoal: Gente, por favor, Martinha tá chamando.
As pessoas parecem se tocar e vêm vindo em direção ao centro da sala, sem muita animação. Martinha aproveita e dispara: É sete, oito galera. Sete, oito. Rapidinho (Pausa para tradução. Toda coreografia é marcada e geralmente em tempo de oito; então pra começar uma coreografia começa-se contando “e sete e oito e já” pra não ter que começar do um. Como muitas bailarinas acabam trabalhando no teatro – além de haver ocasionalmente coreografias em peças - isso foi incorporado ao meio teatral como uma forma de dizer “um, dois, três e já”. Quando se quer pedir agilidade e presteza).
O Armando pediu pra que eu fizesse um aquecimento com vocês...
Martinha – interrompe Armando – Martinha, querida, desculpa, mas eu queria falar algumas coisas antes.
Imagina, querido! Você que manda! – ela diz fazendo cara de quem não está nem aí, mas por dentro puta da vida, pois sobraria menos tempo pra ela aquecer o pessoal. Martinha é baixinha, magra, forte, tem cabelos curtos e pretos, encaracolados, sempre presos pra cima com uma faixa colorida e usa óculos – que ela costuma tirar pra trabalhar e não consegue enxergar quase nada, mas nunca se adaptou a lentes de contato. Veste calças largas e rasgadas na barra e bodies na parte de cima. Sempre com uma garrafa de água mineral de 1 litro e meio na bolsa larga com algum motivo de dança estampado. Ou seja: figurino básico de preparadores corporais. Ou, como ela gosta de dizer, “trabalhadora corporal”; “operária do corpo”...
Armando toma a palavra: Eu acho importante colocar algumas coisas pro grupo – vamo... sentando, gente... Isso, pode ser em roda, no chão - já que estão chegando pessoas novas hoje e a gente vai entrar em uma fase de trabalho complicada. É o seguinte: o texto que a gente vai encenar “Antes que a chuva caia e eu me molhe todo vou abrir meu guarda-chuva”, que é de um autor bárbaro, o Ubirajara Nepomuceno (alguns suspiros ah, oh, nossa, que máximo) - eu sei, gente, eu também adoro ele – vai requerer um trabalho exaustivo de corpo pra gente. Trouxe Martinha hoje (ela faz uma cara de ai-que-bom-que-lembraram-de-mim, mas disfarça) justamente por isso. Em função disso, queria colocar algumas coisas sobre a natureza desse trabalho pra algumas pessoas que eu acho que ainda não pegaram a coisa (não quero julgar ninguém e não quero que as pessoas se sintam culpadas por isso. Não é com ninguém específico, mas tá refletindo a nível de grupo).
Ai, caralha. A mesma lenga lenga de sempre. Agora o Armando vai fazer o showzinho particular dele pra comer meia dúzia de menininha – pensa Isaac.
Queria falar um pouco mais do meu método de trabalho pra quem ainda não pegou e também apresentar pras pessoas que tão chegando. Esse método consiste na “emoção-mãe”. Mãe, porque, sabe como é né, teatro é chão, terra, mãe. Daí emoção-mãe. Fêmea, parir, arte é parir. Então vamos ver como isso funciona na prática. Agarrando o pulso de uma menina: Sente o personagem. Sente. A garota parece que vai cagar. Fecha os olhos. Franze a testa. Diz qual é a primeira emoção que te vem à cabeça quando você pensa no seu texto. Depois de alguns minutos a garota diz: Tesão? Armando dá um grito: Ah-há! É essa! (mais suspiros ah, oh, nossa, que máximo na platéia). Eu quero essa emoção em cena te guiando por todo o espetáculo. Se solta, se entrega, deixa o personagem entrar. Entra personagem, entra!! O teatro tem essa coisa... mágica... lúdica.... é isso... deixa a tua porção mulher/fêmea te guiar. Essa personagem é um bucetão. Um Bucetão com B maiúsculo. Pensa nisso. BU-CE-TÃO. Chega em casa e grita isso bem forte.
Cara, acho que vou vomitar. Quando penso que o Armando passou todos os limites ele se supera – cochicha Laura no ouvido de Isaac. Laura, assim como Isaac, é uma das poucas pessoas que ainda pensa ali. Pensando bem, são só os dois mesmo. E Armando ignorava-a sumariamente desde que ela tinha se recusado a dar pra ele. Ficou com o papel de pingo de chuva.
Armando não desiste: queria aproveitar pra ler uma poesia de minha própria autoria que descreve exatamente esse meu método. Essa poesia está no meu quinto livro, intitulado: “Stanislavski está morto” que está a venda ali com aquela moça bonita chamada Sabrina – Sabrina diz um olá – e vai ser a base do nosso treinamento - então eu aconselho a todos que comprem.
Com outra voz completamente diferente: “Mãe/terra/lua. Filho teu quer mamar. Filho teu quer sonhar. Mas não deixam. Teatro é isso. Onde estão os homens que corriam com o vento? É isso, teatro”.
Aplausos ensurdecedores.
Depois dessa papagaiada toda e de um sentimento de falsa modéstia nitidamente estampado na cara de Armando ele diz:
Gente, gente...vamo lá. Temos pessoas novas hoje e eu ainda queria que elas se apresentassem e falassem um pouco sobre si, seus trabalhos anteriores....Quem quer começar?
Uma gordinha de calça larga, cabelos soltos e crespos diz que ela começa – Armando dá uma olhada desanimada pra ela. Deve ter pensando: essa gorda não vai dar pra encarar, não. Eu e Laura seguramos o riso.
Bom, meu nome é Paula Letícia – alguns gritos de fala alto, fala alto. Armando já dispara meio sem paciência: ator tem que saber colocar a voz. Fala mais alto, querida. A garota, meio sem graça e falando ainda mais baixo começa. Tenho 28 anos e confesso que tive um certo preconceito quando soube que a gente ia fazer o Nepomuceno (silêncio, todos os olhares nela). Fiz Shakespeare durante muito tempo e...eu gosto dessa coisa forte, dramática, sabe? Shakespeare tem essa coisa forte, né? Intensa. Eu sou uma pessoa super intensa. Meu defeito é justamente esse. Eu gosto dessa coisa... grande. Daí tive muito medo quando soube que era uma comédia. E além de tudo Shakespeare tem essa coisa universal, né. Super-universal. Universalééérrimo.
Armando já desfez um pouco a cara de antipatia em relação à menina. Olha, Paula...
Letícia, por favor!
Tá bom. Olha, Letícia, isso que você tá dizendo eu também sentia quando eu comecei. Isso de achar que a gente não dá pra comédia ou não dá pra tragédia, na verdade a gente dá pra tudo, mas falta despertar o modo como cada um vai fazer isso, entende?Tem que dar pra tudo, gente!
Paula Letícia faz cara de quem recebeu uma revelação divina:
Não, claro! Nossa, muito legal isso que você disse. Várias fichas tão caindo. Só que é uma coisa que anda me angustiando muito...
Querida, ator é angustiado! Interrompe Jonas. Todos riem. Menos Isaac e Laura.
Só queria dizer que – continua Paula Letícia – eu tô aí, afim de encarar esse desafio. Dar minha cara a tapa, sabe? Não dá pra ficar sempre na mesma.
Estão vendo – diz Armando – é esse espírito que eu comentava com a Sabrina em casa. É isso que falta no grupo. Entrega. Próximo?
Uma mulher magra, alta, morena, de cabelos lisos; bonita, mas nada demais; começa a dizer com uma voz rouca e um jeito naturalmente não-estou-nem-aí-para-o-fato-de-que-me-achem-linda-e-maravilhosa: Meu nome é Sarah Shana. Bom, eu não costumo definir o meu trabalho. Eu não me prendo a rótulos, sabe. Eu tenho um projeto terapêutico de arte, que ainda tá em fase de experimentação. É uma coisa meio-lúdica, meio-profilática que visa agir no hipotálamo do ser, ativando seu poder de escolha e de sentir prazer. Também não gosto muito de explicar, não, porque senão já limita.
Pronto. A próxima vítima de Armando.
Suspiros de ah, oh, nossa, que máximo.
Ela continua: Acredito no caráter lúdico do teatro. Desenvolvo um projeto psico-pedagógico pra construção de seres de luz que trabalhem a arte de uma maneira holística e global, usando o corpo como um meio e como tratamento de possíveis doenças.
Já ouvi falar nisso – dispara Armando, sem perder tempo. Você está ligada ao movimento Ômega Total?
Não, na verdade eu faço parte de uma dissidência do Ômega Total, o Ômega Mutantis.
Armando: Conhece Paulinho Esperança?
Shana: Claro que sim!
Armando: E aí, o que ele anda fazendo?
Shana: Ah, tá daquele jeito! Sempre o Paulinho.
Armando: É mesmo. O Paulinho tem sempre essa coisa...de ser Paulinho! Os dois caem na gargalhada.
Armando: Mas me diz uma coisa Shana, onde você tá desenvolvendo esse trabalho?
Shana: Por enquanto é um projeto itinerante. Mas eu faço consultas individuais. Também faço massagem; mapa astral; jogo cartas; dou aula de inglês...
Camila já pula dizendo que quer fazer o seu mapa e que depois pega o contato dela. Ligeiro tumulto se instaura. Gente, gente. Sem dispersar. Ainda temos nosso amigo aqui.
Um rapaz de aspecto frágil, magrinho, de óculos começa a falar com uma voz afeminada: Meu nome é Wil Diaz. Quer dizer, meu nome mesmo é Darwilson Dias da Silva (é que meu pai se chamava Wilson e minha mãe Darlene. Daí Dar-Wilson). Mas o nome artístico é Will Diaz. Escolhi esse nome porque é facilmente pronunciável em qualquer língua: “and the Oscar goes to... Will Diaz!” – diz isso com leve sotaque americano. Com zê, porque dá uma coisa assim mais latina, caliente. Igual Jennifer Lopezzzz, Zzzzzeta Jones. (Murmúrios de ah é, ah é, tem razão). E também porque segundo a numerologia é uma combinação perfeita. “Z” dá idéia de fim, fecho, redondo, tudo, todo, nada. Adoro astrologia também – olhando para Shana. Segundo o meu mapa, acabo de passar pelo meu retorno de Saturno e a conjunção cósmica tá perfeita pra eu iniciar minha carreira artística. Vênus, Júpiter e Mercúrio alinhados na 5ª casa. Não é demais?
Suspiros de ah, oh, puxa, que máximo.
Armando interrompe: Mas você já fez algum trabalho em teatro?
Will: Na verdade, não. Quer dizer, fiz uma participação em um infantil, lá perto de onde eu moro, em Nilópolis. Mas eu tô super disposto a aprender com vocês, podem me criticar, faço qualquer papel e tô no maior gás.
Gritinhos de uou!
Armando parece feliz. Bom, gente tô super satisfeito com tudo isso, acho que a gente tá conseguindo reunir um grupo bem interessante e temos tudo pra dar certo. Na hora em que Martinha levanta ele diz: Martinha, acho que tá ficando um pouco tarde e quem sabe a gente começa amanhã já com o trabalho de corpo? Hoje acabou atrasando tudo com essa reunião de produção, mas são coisas necessárias e que precisavam ser ditas. Martinha, putaça, mas disfarçando: Claro, Armando. Até melhor, as pessoas já estão dispersas, mesmo.
Todos vão se levantando, trocando de roupa (atores acham que precisam trocar de roupa uns na frente dos outros porque um ator não deve ter pudor. E tirar a roupa é sinal de que você não tem pudor. Por mais reacionário e retrógrado que você possa ser na sua vida pessoal), alguns correm pra ver o livro de Armando – dá pra parcelar? - comendo maçãs, barrinhas de cereais, bebendo água, tomando mais café. Martinha chora num canto dizendo que “o trabalho dela não tá sendo valorizado” e que ela “abriu mão de um projeto com a Débora Colker pra fazer a preparação corporal do G.R.U.P.O, em consideração ao Armando, parceirão de longa data”.
Ficam Isaac e Laura. Sentados. Olham um pra cara do outro e caem na gargalhada. Laura deita por um segundo no chão e solta um “ai, ai...” de revolta, alívio e pena. Pessoas combinam de almoçar no Mama Rosa. Isaac, você e a Laura vêm? Não, não, valeu, Mama Rosa só tem massa e a Laura tá de dieta. Que isso, lá tem umas saladas bárbaras, eu também tô de dieta, dispara Renata, sempre magra, sempre de dieta. Não, não, valeu. Humm...fazem um corinho malicioso Marcos, Maurício e Juliana. Todos acham que Isaac come Laura. Bem que ele queria. Mas ninguém sabe que ela é lésbica. Ela sempre diz: odeio essa idéia de que todo ator é homossexual. Ninguém precisa ficar sabendo minha opção sexual. Não sou melhor nem pior atriz por causa disso. Daí eles deixam todo mundo pensar que eles se comem. Quem sabe algum dia ela não muda de idéia? Ou me deixa pelo menos olhar ela e a namorada pensava Isaac, às vezes.
Levanta e a puxa pela mão. Saem abraçados.
Lá fora uma tarde nublada de quarta feira. Cinco da tarde e todo mundo sem almoçar. As pessoas descem fazendo barulho, todas de óculos escuros, com seus ares blasés e fazendo cara de sou-ator-mas-não-quero-ser-reconhecido enquanto tentam chamar o máximo de atenção possível. Carregam livros que nunca conseguem ler até o final. Roupas de ensaio nas bolsas. Fumam cigarros, alguns. A maioria é bonita ou com algum atrativo físico. Fingem que não querem fazer novela das oito, mas quase todos cortariam um dedo por um papel de empregada. Dão desculpa de que “a vida de ator de teatro é muito difícil” e que “no Brasil ator tem que fazer TV pra sobreviver”, ou ainda que “a TV dá visibilidade pra que as pessoas venham me ver no teatro”. Mentirosos. Na verdade querem é ir pra ilha de Caras enquanto se recuperam da última separação. Serem entrevistados pelo Jô Soares. Pelo Amaury Júnior, que seja. Comer geral. Posar na Plaboy e dizer que “precisava da grana pra ajudar a família” ou “montar um espetáculo”. E depois dizerem “não falo sobre a minha vida pessoal”. Parasitas da arte. Mas eles eram tão diferentes assim de Isaac?
Chopp no Belmonte? Interrompe seu fluxo de pensamentos Laura.
Só se for agora, reponde Isaac.

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