Em algum momento é preciso começar. Sempre me perguntei o que faz as pessoas serem como são, fazerem as escolhas que fazem, se é tudo sempre tão aleatório e até mesmo se há sentido nessas perguntas. Mas um dia, impulsionada por acontecimentos marcantes - ou pela falta deles - as pessoas se vêem impelidas a começar. E foi assim comigo.
Não sei desde quando resolvi escrever. Nem se ao menos resolvi de fato. Sei que o hábito da escrita me acompanha há tempos como algo corriqueiro, entranhado nas teias do cotidiano. Blocos, cadernos, cadernetas, folhas soltas, agendas, diários, arquivos de computador. Tudo recheado de idéias, frases, trechos. Sonhos pululam durante a noite, sugerindo-me idéias fantásticas que se esvaecem com os primeiros raios, deixando a dúvida se de fato eram geniais ou se foram produto da bruma dos sonhos, que faz com que nos sintamos heróis.
Escolhi a escrita, talvez, porque os fantasmas que me assombram sejam da ordem do indizível. É através das palavras que tento verbalizar algo que parece incapaz de ser materializado. A escrita é para mim, maldição e alento. Como um Édipo, vago por labirintos de minha própria mente por ter visto o inominável. E por sua característica de indescritível, se manifesta pelo constante desejo de expressar-se através de palavras. Mesmo sabendo que isso é e sempre será impossível escolhi a escrita; por ser tão próxima e ao mesmo tempo tão distante de mim.
O fato é que um dia tudo precisou começar, mesmo sem saber se teria um fim. E de repente todas as idéias se tornaram poucas e apenas um vazio consumindo-se em náusea tomou conta do que antes era apenas um vago desejo para o futuro. Mas uma coisa é certa: prepara-se a vida toda para dias como este e há pessoas que nunca chegam perto. Blasfêmia seria não prosseguir. Falar é fácil. Escrever quando não se precisa também. Difícil é olhar a página em branco escrita: Capítulo I.
Capítulo I
A tela mostrava o marcador do mouse piscando do lado esquerdo. A chuva caía fina e ininterruptamente lá fora. Dentro, apenas o barulho das teclas no computador. Sempre achara um recurso um tanto quanto fácil começar assim, falando sobre a chuva, mas não resistia a este apelo. Dias chuvosos são propícios para se começar um texto. A chuva tamborila na janela do quarto. Tem frase mais onomatopéica? Tamborila. Mesmo quem não sabe o que é tamborila entende. E ela era especialista nisso: começar. Merda de começo. Sempre começava os contos sem ter a menor noção de onde eles iriam terminar. Talvez por isso eles ficassem tão ruins. Talvez por isso perdesse a paciência na metade do conto e aí enrolava o resto, e os professores diziam: “Sim, muito bom, mas falta desenvolver...”
Desenvolver. Todo problema da sua vida estava em desenvolver. Desenvolver-se nos estudos, na profissão; desenvolver uma relação madura e adulta, desenvolver bons hábitos. Gostava do conto pois ele era uma forma curta de desenvolver. Algo que se começa e termina às vezes em uma tarde. Há quem diga que isso é o mais difícil: condensar idéias em um texto pequeno. Bobagem. Conto é o exercício do preguiçoso.
Notem bem: ela diz um texto. Isso quer dizer que pode se tratar de um conto, um livro, um romance, quem sabe um romance épico! (Exclamações, não. Exclamações não são elegantes. São cafonas). Poderia ser um roteiro, uma peça, uma esquete, uma idéia solta, um projeto. Hoje em dia os medíocres encontram nomenclatura para quase tudo. Um texto soa pretensioso o bastante, sem gerar grandes expectativas. Na pior das hipóteses, ela poderia defender-se dizendo tratar-se apenas de uma brincadeira – não, não sou uma escritora profissional. Aliás, o que faz alguém se tornar uma escritora profissional? Em que momento pode-se começar a dizer “profissão: escritora” sem que o balconista do crediário das Casas Bahias olhe pra você como se estivesse vendo um ET? Quando se publica um livro? Mesmo se ninguém o ler, podemos dizer que somos escritores? (Isso tá parecendo aquela frase: se uma árvore cair na floresta, sem que ninguém veja, terá caído realmente?). Ou seria quando se começa um texto? Visto de fora, todas as biografias parecem plausíveis. Vistas de dentro, toda vida é um caos. Conseguiria encontrar nos mais recônditos de sua infância, motivos para ser uma escritora. E igualmente motivos para ser jornalista, atriz, médica, professora...
Seu problema todo era preguiça. Muita preguiça. De viver uma vida que não fazia muito sentido. De brigar por coisas pelas quais não acreditava muito. De ter sempre muitas dúvidas. E as dúvidas eram tão freqüentes e assustadoras que duvidava até mesmo se as tinha. Dúvida de ter dúvida. Ser sempre “mais ou menos”.
Viver era mesquinho e miserável. Sob qualquer condição. É claro que isso soa muito “intelectual francês” quando se têm barriga cheia, saúde e conforto. Mas é verdade, a condição humana é trágica, e uma coisa é ler nos livros. Outra, bem diferente, é experimentar na própria carne. Sabia que existia uma enorme diferença entre ser tetraplégico, miserável ou ter uma doença mortal e destruidora, e ser “saudável”, ter onde morar e comer. Objetivamente conseguia concordar com esta afirmação. Mas objetividade não era o seu forte.
Uma pessoa que não come tem apenas uma preocupação: comer. Uma pessoa que não anda tem apenas uma preocupação: andar. Uma pessoa que está prestes a morrer tem apenas uma preocupação: viver. Uma pessoa que faz tudo isso, tem várias preocupações além de tudo isso. Se preocupa em ser feliz; em fazer o bem ao próximo; em se posicionar a respeito da invasão do Iraque; em ter uma opinião sobre a cota dos negros nas universidades; em saber porque realmente começou a guerra do Vietnã; em arrumar um bom cabeleireiro; em melhorar de emprego; em fazer uma dieta; em ser uma boa namorada; em fazer exercícios; em ler mais pra saber do que realmente gosta; em manter a casa organizada como a da Martha Stewart; em ler a obra completa de Joyce, Kafka e Proust (e mais alguma coisa que a faça citar outros autores além desses que todo mundo cita sem ter lido); em sair aos finais de semana; em lembrar dos amigos, dos parentes; em ser simpática; em sorrir para velhinhos e crianças nas ruas.
Não que as três opções anteriores sejam alternativas mais viáveis – o miserável, o tetraplégico e o moribundo. Mas viver é duro. Ainda quando aparentemente as coisas sejam simples. Ou, de outro modo: nada é simples.
Acho que a primeira atitude a se tomar é admitir que essa história é a minha história. E pra isso, vou passar pra primeira pessoa.
Eu não consigo. Não queria dizer coisas como essa. Dizem que não é bom, que a gente deve dizer sempre eu consigo. Mas eu não consigo. Simplesmente não consigo. Tento, tento. Minha vida é cheia de não consigos. O que eu sonhei em fazer pro resto da minha vida? Quando começa o resto? Sei que já quis ser médica, mas era só por influência do meu pai. Também já quis ser astrônoma, mas isso foi antes de descobrir que seria necessário saber matemática e física (dado que eu erro até na hora de calcular 10% de gorjeta em restaurante, acho que não seria uma boa idéia).
Gosto das madrugadas para escrever. Sempre senti uma espécie de torpor às três da tarde. Gosto da manhã e da noite. Detesto as tardes. São insossas, quentes e preguiçosas. Tem sempre alguma obra sendo feita ou algum telefone tocando. Os dias passam absurdamente banais. Tenho a sensação de que passei a vida toda neste apartamento. E que toda vida só existe aqui dentro. Nada mais existiu.
Consigo ver outros momentos como este e isso só aumenta essa sensação. Quando estudava de manhã e ainda não tinha muita coisa pra fazer de tarde (cursos e essas coisas que adolescentes fazem), vagava pela casa vazia à procura de algum divertimento. Não gostava de brincar com as outras crianças da rua. Chatas, elas. Gostava de brincar sozinha. Os dias de chuva eram uma benção. Podia me dar ao direito de ficar em casa sem me sentir a criança mais esquisita do mundo e sem os olhares de censura dos meus pais. Depois veio a época do vestibular e esse sentimento de torpor voltou a acometer-lhe (já estou falando na terceira pessoa de novo, que nem jogador de futebol: “O Romário que vocês conhecem está de volta!”; ou ex-integrantes de reality shows/atrizes de quinta: “A Gislaine continua aquela pessoa simples de sempre”). Dias inteiros passados de um cômodo para outro, lendo alguma coisa, ouvindo uma música, vendo TV, tentando estudar e nunca conseguindo. Não era à toa que os pesadelos de que estava de volta à escola andavam freqüentes. Assim como aqueles com personagens de Barrados no Baile, o velho seriado adolescente que assistia lá pelos seus 16 anos e que agora era reprisado na TV por assinatura, como uma metáfora mórbida da sua própria existência. Era uma adolescente sem cura. A sensação de que o tempo passa rápido demais, porque não se produz nada e lento demais porque parece que isso nunca terá um fim. Os dias terminam e a sensação é a de que: “amanhã tudo vai ser diferente”. Mas o dia seguinte é a mesma coisa. A ausência de rotina tornou-se a sua maior rotina.
Às vezes eu durmo por horas a fio, outras tenho insônias terríveis. Alguns minutos de sono podem ser restauradores. Li isso em alguma revista de alguma sala de espera de consultório. Não consigo me concentrar em nada durante muito tempo. Quando chove dou graças a Deus. Como se, assim como na infância, não precisasse me esforçar para parecer animada. Nada mais chato do que pessoas animadas. Não felizes, mas animadas. Animada é completamente diferente de feliz. Dinâmicas. Sempre que passo por lojas em shoppings centers e vejo aqueles anúncios: “Se você é jovem, dinâmica e se identifica com o nosso perfil, venha fazer parte da nossa equipe” dá vontade de entrar e dizer: “oi, eu sou dinâmica”. Só pra ver o que acontece.
Em minha peregrinação da sala pro quarto, do quarto pra cozinha e da cozinha pra sala, espio como anda o mundo nos meus setenta e poucos canais por assinatura - que na verdade se resumem a uns dez que eu realmente assisto. (Aqui preciso abrir um parêntese pra dizer que este é mais um dos meus grandes defeitos: assisto muita TV; uma média de 3 a 4 horas por dia – um dia mais, outro menos, depende do meu humor - particularmente de madrugada, mas têm dias em que é quase o dia inteiro). É sempre uma esperança pensar que o mundo pode explodir antes que eu precise fazer algo da vida. Mas Deus não seria tão bom. Acho que até uma terceira guerra começar, o melhor é realmente dar uma dormida.
Com 26 anos eu me acho uma caricatura de mim mesma. Sou desproporcional pra mim mesma. Uma pessoa que poderia ter sido várias coisas e convive agora com os seus piores defeitos carregados de tintas. Também poderia ter me tornado algo bem pior. Claro que sempre é possível piorar. O fato é que eu tenho 26 anos. Vinte e seis anos e ponto. Não posso sequer me conformar em ser isso mesmo e acabou. Tenho que continuar lutando para melhorar e parecer bem, porque aos 26 anos é isso que esperam de você. Não tenho sequer o direito de desistir aos 26 anos. Sou velha demais para tentar e nova demais para desistir. Somente a arrogância de quem tem 26 anos para se achar velho demais para certas coisas. Sinto um peso enorme nas costas. E olha que já melhorou um pouco. Aos 20, o peso era ainda maior. Mas aos 26 faltam 4 para os 30. Faço 27 daqui a dois meses. Pronto, tenho 27 anos. Três anos para completar a casinha dos 20.
Tenho muito que dizer. Mas o que realmente importa guarda uma impossibilidade em narrá-lo – e daí a importância de sua tentativa. Se escrever é a arte de cortar palavras, que palavras escolher? Que idéias seriam aquelas que pairam sobre nossas cabeças e ao mesmo tempo guardam particularidades que só quem escreve pode transmiti-las? As palavras escapavam quase tão rapidamente quanto as teclas de meu computador em minha datilografia cata-milho. As idéias são fugidias e vêm na mesma velocidade com que se evaporam. Quero escrever, meus pensamentos vêm quase sempre em forma de um texto, mas nunca levo adiante.
Acho que vou escrever sobre a dificuldade em escrever. Sobre o quanto é difícil fazer as coisas de que se gosta. A primeira idéia é boa. Um tanto já explorada, mas não é a originalidade da história que importa, mas o modo como se conta. Grandes escritores fizeram sucesso seguindo essa fórmula. E que - caralho, não estou atrás de fórmulas. Quero me expressar. (Humm, me expressar é bem manjado). Mas essa segunda... sei não. Dificuldade em fazer o que se gosta? Não sei se outras pessoas têm isso, não. Será? Meio paranóia demais. Então sobre o que eu escrevo? Sobre essa difícil fase pela qual eu estou passando - desde que eu cresci eu acho que “estou passando por uma difícil fase”, mas desconfio que seja uma coisa que chamam de vida adulta.
Bom, em todo caso essa é uma boa maneira de extravasar e uma forma de ter alguma coisa pra fazer com uma certa regularidade. Seria uma espécie de Em Busca do Tempo Perdido, ou A Consciência de Zeno (muito obrigada, coleção O Globo, por diminuir minha ignorância.).
Preciso de tempo para pesquisar especificamente sobre algum tema. A autora de Harry Potter tomava notas das suas idéias muito antes de escrever o livro. Mas que tema? Pra isso eu preciso de tempo e como eu vou ter tempo tendo que lavar roupa, cozinhar, arrumar a casa e trabalhar? Ok, posso comer na rua. Posso não arrumar a casa. Mas preciso trabalhar. A autora de Harry Potter fazia tudo isso e ainda tinha um bebê.
Eu queria ser uma dessas escritoras muito modernas, cheias de tatuagens e cabelos coloridos, que falam coisas inteligentes e engraçadas, que tem coragem de expressar opiniões polêmicas e escrevem roteiros para programas de televisão, sendo perfeitamente vistas tanto na primeira fila do São Paulo Fashion Week quanto na capa de um caderno literário. Mas acho que sou muito caipira pra isso.
Não. Mentira. Queria nada. Acho essas escritoras um pé no saco e estou apenas sendo sarcástica e exaltando o quanto elas são patéticas.
Escreveria uma história intrincada de tramas e personagens ou algo mais subjetivo e circunspeto? Qual meu estilo? Aí depois eu escreveria para uns 3 ou 4 autores que eu admiro e perguntaria, de um jeito irresistivelmente elegante, o que fazer para ser uma escritora. De modo que a minha pergunta já demonstre o meu potencial, entende? Também mandaria meus manuscritos para algumas editoras, prevendo já algumas recusas que seriam narradas com alguma dose de charme num futuro repleto de glória e consagração. Daí para o grande reconhecimento diante do público e da crítica seria um pulo. Quem sabe fizessem um filme do meu livro? Quem sabe me convidariam para fazer o roteiro, ou atuar como atriz? Já podia até me ver entre Patrícia Melo e Rubem Fonseca – eu, dizendo o quanto eu aprendi com os meus mestres etc – discursando sobre o romance policial na França do pós-guerra.
Não. Meio viado isso.
Seria, eu, uma outsider? Hoje em dia qualquer um que escreva sem pontuação, fale sobre um tema estranho que pesquisou na internet (mas que nunca viu de perto) e salpique umas escatologias aqui e ali acha que é transgressor. O próprio Joyce (que, ironia das ironias, tornou-se o maior dos estabelecidos).
Preciso escolher se eu quero ser a mulher que escreveu Harry Potter (nunca lembro o nome dela) ou a Patrícia Melo. Também preciso tirar a roupa da corda, arrumar um emprego melhor e emagrecer. E decidir se eu quero ter filhos.
Passados alguns minutos, após as primeiras linhas de desabafo e o primeiro telefonema de uma amiga, eu me distraio e acho que “já fiz o suficiente por hoje, pra quem nunca faz nada”. Nunca passa pela minha cabeça trabalhar duro e ininterruptamente todos os dias, nem que fossem algumas poucas horas. Contento-me com restos, migalhas. Durante muito tempo minha luta foi em sobreviver. Viver bem já seria um luxo. Sem minhas manias, obsessões e fobias a me atrapalhar a vida. (Talvez eu fale isso em outro capítulo. Outro livro, quem sabe. Uma grande trilogia...). Depois de uma Sessão de Descarrego (programa evangélico que passa na Rede TV de madrugada, junto com o Fala que eu te escuto. Tem dias em que eu até tenho vontade de ligar pra lá...Também é um tema interessante pra um capítulo) eu me sinto bem melhor. Na próxima crise tudo volta e eu escrevo sobre os mesmos temas. Tenho vários textos idênticos começados e nunca terminados. Às vezes parecem plágios uns dos outros. Minha vida era um plágio dela mesma. Era só copiar, colar e cortar partes redundantes. E agora o trabalho era juntar todas as peças. Mas talvez este fosse o meu jeito. Aos tropeços, sangrando, se arrastando. Poderia ser mais fácil, pelo menos pra algumas pessoas eram. Mas não pra mim. Talvez escrever seja esse trabalho de ajustar algumas coisas em alguns lugares e cortar o excesso. Tenho dificuldades em me ajustar. E cortar os excessos.
Por hoje chega.
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