Não se mexa. Eu sou seu vizinho da frente e tem um homem parado na sua sala. Vou ligar para polícia.
Ela acordara abruptamente com a campainha do telefone e só então percebeu que havia adormecido em frente da TV, com um copo de whisky na mão, vendo uma entrevista no Amaury Júnior. Também, pudera! O stillnox (para dormir) e o frontal (para relaxar) fizeram o devido efeito. No mesmo instante em que o telefone tocou, o ruído a sobressaltou de tal modo que o copo caiu de seu colo, se partindo em vários pedaços e derrubando também o telefone.
O que o homem havia dito? Que havia alguém em minha sala? Não, não podia ser. Seu prédio era equipado com circuitos internos e externos de TV, portas com células fotoelétricas, sensores de respiração e outras quinquilharias que faziam a conta do condomínio extrapolar os limites da razão e os porteiros fofocarem sobre a vida de todo mundo. Mas, tudo em nome da segurança. E agora ela era acordada de madrugada por um maníaco que se dizia ser seu vizinho? Na certa era algum desocupado passando um trote no meio da madrugada. E como ele sabia que do prédio da frente era possível ver o seu quarto e a sua sala ao mesmo tempo? Resolveu aproximar-se da janela e ver se alguém no prédio em frente tentava algum contato. Todas as janelas estavam fechadas, luzes apagadas, mas foi através do reflexo de uma delas que pôde ver seu pior pesadelo tomando forma.
Sua sala era equipada por um sistema de luzes que eram ativados pela voz humana ou pelo contato físico. Através do reflexo da janela da frente pôde ver, em sua própria sala, um homem alto, todo vestido de preto, imóvel num canto, talvez apavorado pela idéia das luzes terem se acendido, pelo ruído do telefone e pelo estampido de vidro quebrando.
Seu pulso se acelerou e numa fração de segundos perdeu o senso da realidade. Tum tum tum tum. Justo hoje que eu acabei de comprar meu terninho azul petróleo. Não era trote. O homem havia visto alguma coisa e tentara se comunicar com ela, enquanto avisava a polícia. Na certa, não acendera a luz pra não despertar nenhuma suspeita. O suor escorria gelado molhando sua camisola Victorias Secret’s de cetim azul que comprara em Miami, da última vez, enquanto ela corria em direção ao telefone. No pequeno trajeto, esforçou-se por não fazer barulho - tarefa impossível quando um dos cacos de vidro lhe cravou na sola do pé. O corte havia sido pequeno, porém profundo, de maneira que o sangue jorrou volumoso e quente, molhando o chão e trazendo-lhe um incômodo terrível. Sem saber que providências tomar primeiro, resolveu ir até o banheiro e fazer um curativo. O algodão havia acabado, apenas uns três band-aids apareceram no fundo da gaveta e não havia mertiolate, mercúrio ou esparadrapo. Quem vive se machucando é criança, pra que eu ia ter todo esse kit de primeiros socorros, porra?
Depois de limpar o pé com água, sentindo uma dor terrível, pôde improvisar um curativo usando os absorventes que encontrou e colando tudo com durex. Isso até a distraiu durante alguns minutos de seu perigo maior: havia um homem em sua sala e ela devia tomar providências. Não podia esperar a boa vontade de seu vizinho da frente. Correu até o telefone novamente, desta vez tomando cuidado com os cacos, e quase não acreditou: mudo.
Enquanto pensava que sim, claro o bandido cortou minha linha telefônica assim que ouviu a campainha, para que eu não pudesse pedir socorro foi em busca do seu celular na bolsa. Sem bateria. Recarregador na sala. Agora se sentiu realmente fodida.
Foi até a janela. Talvez fosse melhor começar a gritar que nem uma louca. Mas será que daria tempo do socorro vir antes que o bandido arrombasse a porta de seu quarto e a matasse ou fizesse coisa pior? Resolveu vestir uma calça jeans; uma só não, duas: uma de moletom e uma jeans por cima. Depois várias jaquetas. No caso de tentativa de estupro o homem encontraria pelo menos alguma resistência.
Olhou em cima da cama e viu um teste da Marie-Claire daquele mês: “descubra se seu homem está tendo um caso. Ele diz que tem uma reunião de negócios e que só chegará em casa muito tarde. Como ele chega? A) De fininho, entra na cama e não fala nada. B) Reclamando que trabalhou demais e que precisa de um carinho seu. C) Com um buquê de flores numa mão e uma garrafa de champagne na outra, pedindo desculpas por ter trabalhado até tão tarde”. Os homens que eu namoro não têm reuniões de negócios. Nem mandam flores. Nem têm emprego. Pensando bem, não namoro há um bom tempo. Pensando bem, se eu tivesse um homem não estaria nessa situação agora. Mesmo que ele chegasse tarde. Pensando bem – aliás, pensando pouco também - Marie Claire é uma bosta.
Débora está presa com um homem em sua sala. Débora está com muito medo. O que Débora deve fazer? A) Enfrentar o homem com um caco de vidro. B) Se jogar da janela. C) Gritar por socorro. No caso de responder a alternativa A, as chances do homem atacá-la são de 100%, na alternativa B a queda do 12º andar era desanimadora e a terceira hipótese parecia a mais viável, apesar do já referido problema do homem se aproveitar para arrombar de vez o quarto e fazer o que ele tinha que fazer. “Sexo anal: prós e contras. Quebrando tabus”.
Afinal, o que ele estaria esperando? Havia muitos objetos de valor para serem roubados em sua sala: DVD, som, vídeo, TV... Estaria ele igualmente assustado com os movimentos no quarto? Ele não sabia se existia um homem; um homem e uma mulher; dois homens; homens armados; homens enormes e armados dentro do quarto! Um bacanal rolando no quarto com halterofilistas sado-masôs!!! Sim, ele deveria estar com medo também! “Meninas superpoderosas: o medo masculino diante da mulher independente”. E onde é que andava o vigia da noite neste momento? Resolveu colocar no canal do circuito interno do prédio e só pôde ver a figura do seu Severino curvada sobre a mesa numa posição que poderia ser tanto a de um cochilo como a de um cadáver recostado após levar um tiro - ou ainda: a de alguém amarrado. Não havia sinais de sangue. Pelo menos não parecia haver. Mas também a imagem era em preto-e-branco e não havia muito como perceber os detalhes.
Quem sabe o prédio todo estaria tomado por uma quadrilha que assaltava todos os apartamentos? Suando em bicas devido ao excesso de roupas que usava e ao medo que sentia, resolveu ir novamente à janela para ver se algum sinal lhe indicava o que fazer. O homem estava na mesma posição estática. Que estranho. Mais estranho ainda foi ver sua gata, Alice, passar por entre as pernas do homem. Não, não era um homem. Seria uma piada de mau gosto? Agora ela começava a se lembrar. Sua empregada havia colocado o cabide de roupas e chapéus na sala, para que fossem limpos. Como ela se atrasou e acabou tendo que sair cedo, o cabide havia ficado ali mesmo para que amanhã o serviço fosse concluído. Talvez devido ao movimento de sua gata pela sala - que esquecera de prender - algumas luzes tenham acendido e formado um estranho jogo de sombras entre os casacos e chapéus, dando a impressão de que um homem estava em sua sala. Claro! É isso! Como quando era criança e não conseguia dormir vendo as formas que as árvores em frente a sua janela adquiriam toda vez que ventava um pouco mais forte e os galhos batiam como longos dedos de bruxas malévolas, de unhas pontudas, prontas a aterrorizar criancinhas. Caramba! Que idiota eu sou! O telefonema foi um sonho e tudo isso uma alucinação! Tenho que parar de tomar essa porra desse stilnox misturado com whisky. Me faz ter sempre uns delírios desse tipo. Vai ver o cara nem ligou. Imagina se ela começa a gritar, que vexame! Num instante ela teria que dar explicações para a polícia. Como ela não se lembrara que havia deixado a gata solta e que o cabide estava excepcionalmente naquela sala, para limpeza do dia seguinte? Sem dúvida seria uma longa explicação para a polícia, nossa, como é mesmo essa “técnica de feng shui aplicada aos relacionamentos”? puta que o pariu, o cabide andou.
Como o cabide tinha andado? Ele não só tinha andado, como estava se aproximando cada vez mais de seu quarto e ela quase berrou ao ver os gestos perfeitos de um homem e não um cabide, sua idiota. Seu pé doía cada vez mais e o curativo já não era suficiente para conter o sangue que caía direto sob uma reportagem com a Hebe Camargo, transformando-a em ruiva. O excesso de roupas a fazia suar e suar. Tonteira. Homem se aproximando de sua porta. Teto preto. Deve ser a morte. Até que não é tão ruim.
X X X
Não soube dizer ao certo por quanto tempo ficou desacordada, mas o fato é que quando se levantou ainda era noite cerrada e todos os relógios do quarto piscavam, indicando que havia faltado luz. Se levantou com uma certa dificuldade, ainda com o pé latejando e a cabeça um pouco oca. Sua porta estava intacta e ela estava sozinha no quarto. Foi ao banheiro e lavou o rosto. Foi até a janela e pôde ver a imagem do mesmo homem, agora em outra posição: sentado em frente a uma grande estante. Não conseguiu entender o que o homem poderia estar fazendo. Será que ele ia começar a folhear sua coleção de Caras?
Observando mais atentamente, pôde notar que o apartamento em frente ao seu não refletia apenas as imagens de sua casa. Por serem apartamentos bem maiores e em menor número, para cada janela do prédio da frente, podiam ser vistas imagens cruzadas de dois apartamentos do seu prédio. E o reflexo que assistia não partia de seu apartamento, mas era a fusão de imagens do seu apartamento e o do andar embaixo ao seu. Por isso a sua gata aparecia passando no meio das pernas do homem. A gata estava mesmo andando em sua sala e esta imagem se fundiu com a do homem do apartamento debaixo do seu. Então havia um assaltante no outro apartamento? Ela deveria avisar?
Subitamente a janela que observava se abriu e um homem começou a fazer sinais indescritíveis para ela. Seria o homem que ligou? E o dia que não amanhecia!! Não sabia quanto tempo já estava nesta situação. Se sentia fraca, dolorida e já pensava na hipótese de se entregar ao suposto assaltante. E se ela gritasse pela janela e no final das contas não fosse nada, apenas uma ilusão de reflexos numa janela, observados por uma mente insone e atordoada por esses malditos tranquilizantes? O homem que ela vira acenando no prédio em frente pode ter sido a imagem de fato que ela pensara ter visto de seu próprio apartamento. Quem sabe a imagem não vinha de dentro do apartamento e não um simples reflexo? “Emagreça 5 quilos em uma semana com a dieta do leite condensado”. “Adriane Galisteu conta como venceu a depressããããão...”
Acordou recostada em frente à janela. Os primeiros raios da manhã começaram a se aventurar e ela lembrou, aliviada, que devia estar amanhecendo. Não mais reflexos, o telefone voltara a funcionar, a empregada abrindo a porta. Na sala, objetos caídos, inclusive o tal cabide. O corpo todo doía e sua fisionomia também não era das melhores. A empregada não compreendeu nada. Não havia sinais de arrombamento. Sua cabeça ia explodir.Merda. Malditos tranqüilizantes.
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