domingo, janeiro 14, 2007

Ciúmes



... ídio
... surdo, coitada!
... automutilação
Não sabia se despertara com o som das vozes na sua cabeça, se fora com o gosto amargo ou se com a luz do dia perpassando as cortinas, mas sabia que algo havia acontecido e não conseguia se lembrar. Teria bebido muito e entrado em coma alcoólico? Não lembrava de ter bebido apesar de seu corpo ter a sensação física de uma ressaca. Além do mais, não bebia já havia algum tempo, parte do “metas para conseguir que Ele volte para mim”. Tinha a estranha mania de produzir manuais para si mesma. Não sabia se aquilo era um sintoma de neurose ou se de fato conseguia as coisas porque as estruturava primeiramente no papel. Foda-se. Não vinha ao caso.
Que porra de agulha é essa? Não, vocês não vão... mas que droga, as palavras não obedeciam, não saíam da boca. Teria ficado tetraplégica? Não conseguia pensar em mais nada, um sono profundo a invadia e só se lembrava de uma enfermeira loira com a raiz dos cabelos preta. Odeio raizes pretas. Foi a última coisa que conseguiu pensar antes de cair no sono.
As imagens vieram primeiro como gotas, e mais gotas, e gotas grossas, até se transformarem em uma enxurrada de pensamentos que não lhe davam um segundo de sossego e por mais que lutasse contra, não conseguiria. Sofria do que os médicos diagnosticavam Transtorno Obsessivo Compulsivo - ou TOC, para os íntimos. O TOC consistia na repetição de gestos ou pensamentos que chegavam por vezes a impedir a pessoa de tocar sua vida normalmente. Tais gestos ou pensamentos transformavam-se em rituais. Os rituais podem ser de dois tipos. O primeiro tipo caracteriza-se por conferir se portas e janelas estavam fechadas, beijar santos, bater três vezes na madeira e mais uma infinidade de gestos realizados com o intuito de neutralizar os pensamentos negativos. Eram uma espécie de amuleto. Mesmo sabendo que isso não possuía nenhum embasamento lógico e racional as pessoas acometidas por essa síndrome têm que fazer aquilo. A maioria das pessoas que tem TOC possui essa manifestação. O segundo tipo de ritual não é exatamente um ritual. Ou melhor, pode ser visto como um ritual mental. Tratava-se de uma interrupção súbita da mente por pensamentos totalmente sem lógica e conexão com a realidade. Até aí nada demais – quem nunca pensou uma maluquicezinha? O problema é que tais pensamentos não iam embora jamais. E sua presença desencadeava crises de pânico. E os pensamentos também tinham seus próprios rituais: necessitavam de não-pensamentos para serem neutralizados: “vou morrer, vou morrer, vou morrer”; “não vou morrer, não vou morrer, não vou morrer”. Era este último tipo que a atormentava. Com freqüência via sua mente ser subitamente assolada por toda a sorte de pensamentos – bons, ruins, banais e corriqueiros – e não poder controlá-los. Trechos de música. Imagens. Era um verdadeiro inferno. Desde pequena sofria com imagens de cenas fúnebres; a da sua própria morte e a da sua mãe, com requintes de detalhes. Acordava no meio da noite, assustada, com sonhos que não conseguia descrever, onde a profusão de cores e formas era desmesurada. E o pior era não conseguir explicar para as pessoas. Um dia tentara contar para um amigo, mas desistiu antes da primeira frase, depois de ver seus olhos esbugalhados. Tinha inveja das pessoas que não podiam nem sequer imaginar o que era aquele tormento. O ciúme era apenas uma forma de manifestação da doença. Sabia que não tinha lógica, sabia que não devia perguntar “onde você estava até a essa hora?”, mas simplesmente não conseguia se controlar. Era uma força maior do que Ela. Tinha que dizer aquilo. Era como uma ordem a martelar-lhe os tímpanos.
Sem dúvida havia ido longe demais. Quando sentia ciúmes - e ela o sentia com uma freqüência alarmante - era como se um pequeno animal estivesse a corroer suas entranhas. Quente e gelado. Ácido. Nestes momentos, o único modo de saciar o pequeno animal era com algo que fosse maior do que ele. Começou com a contração voluntária de músculos. Sim. Contrair os músculos era bastante eficaz no começo, pois a cãibra posterior era de uma suavidade e relaxamento indescritíveis. Só que as sucessivas contrações e cãibras aos poucos deixaram de fazer efeito - ou o seu ciúme aumentou, não sabia ao certo. Até começou a fazer musculação em função disso. A dor produzida pelo excesso de repetições e carga a fazia esquecer por horas sua própria dor. Depois a sensação de relaxamento era total. Desacordava após horas de exercícios. Não foi preciso muito tempo para ficar com as costas de um lenhador e as coxas de um maratonista, o que era suficiente para despertar olhares curiosos por onde quer que passasse. Mas não foi suficiente para alimentar seu animalzinho. Ele queria sempre mais.
Aí veio a fase dos arranhões e das dentadas. As unhas longas e afiadas eram bastante úteis neste caso, mas aos poucos começaram a se quebrar, tornando-se mais um método a ser abandonado. E dentadas eram bem legais, mas aos poucos teve que começar a andar apenas de calças e blusas de mangas compridas, o que despertava a curiosidade sobre uso de drogas injetáveis. Além disso Ele podia desconfiar (e Ela preferia a morte do que Ele saber que Ela sentia ciúmes). Os tapas também resolviam bem, sem grandes seqüelas. Dar tapas nas próprias pernas era algo que se lembrava de sempre ter feito, quando algum garoto a enchia o saco no colégio. Sabe, quando você fica com raiva e bate de leve na perna dizendo “puta que o pariu”? Pois é. Imagine isso elevado a enésima potência.
Daí para o mundo exterior foi um pulo. Não se conformava em ouvir as pessoas falarem em masoquismo. Não era prazer o que Ela sentia. Era alívio. Será que nunca ninguém tinha sentido um sentimento suficientemente forte que não coubesse em si? Um amor, um ódio, um tesão, uma saudade, qualquer coisa que fosse insuportavelmente grande para caber dentro de uma pessoa só? E que por mais que gritasse e corresse e falasse e risse e bebesse aquilo era como um punhal cravado no peito e sendo torcido dia a dia. Nunca passava. Alguns escreviam versos, outros compunham músicas ou pintavam quadros. Chamassem do que quisessem. Ela simplesmente não sabia o que fazer com todo aquele sentimento. Voltemos a parte em que o sentimento atingiu o mundo exterior. Isso. Foi depois que as contrações, os arranhões, as dentadas e os tapas em si mesma pararam de fazer efeito. Aí ela adentrou o fabuloso mundo das superfícies espancáveis.
As superfícies espancáveis, como o próprio nome já diz, consistiam em superfícies que seriam possíveis de se espancar sem nenhum prejuízo. Começou com um saco para treinamento de box. Mas logo aquilo pareceu civilizado demais. Sabe executivo que quer aliviar as tensões do dia a dia e se matricula em um curso onde um psicólogo com barbicha diz: “vamos lá, Carlos Eduardo (Carlos Eduardo é nome de executivo estressado) canalize sua negatividade nesse saco de box. Imagine que ele é um cliente nervoso”. A última modalidade era “Teatro para executivos”. Um sujeito totalmente viado (espiritualmente viado) com calças largas e descalço dizia pra outros sujeitos descalços (não sei se esses sujeitos são viados) se imaginarem imersos numa bolha gigante que se deslocava no espaço. Depois faziam vivências do cotidiano para reelaborarem frustrações. Jardim de infância pra adulto. Tem otário pra tudo.
Logo começou a dar socos em mesas. Destruiu várias. Portas – algumas quebradas. Então resolveu passar para algo mais resistente: paredes. Mas logo vieram as reclamações dos vizinhos. Teve que encontrar um muro, o seu próprio muro, que ela pudesse esmurrar em paz, sem ser incomodada. Os nós dos dedos já estavam bastante endurecidos dos golpes sucessivos. Mesmo assim, passou a protegê-los com esparadrapos, não para evitar a dor, mas para que as escoriações não ficassem à mostra. Além de tudo devia se importar com a opinião dos outros. Não porque realmente se importasse, mas isso poderia constituir-se num impeditivo para seus planos. Poderiam querer interná-la ou interditá-la. Já foi difícil o dia em que quebrou um dos dedos e teve que se justificar para o médico dizendo que foi um acidente. O idiota pensou que ela apanhava do marido. Quem dera! Seria um alívio apanhar do marido. Não só isso demonstraria que Ele se importava com Ela, mas também resolveria seu problema de ter uma dor superior a que sentia dentro do seu peito toda vez em que via Ele.
Um dia até mesmo os socos nas paredes de tijolo bruto pararam de ter a sua graça. Tornaram-se rotina e ela já havia calejado a mão o suficiente – e destruído-a também. Unhas curtas e sujas, nós inchados, dedos grossos e retorcidos como galhos de árvore. Nem a sombra da mão de quem fez oito anos de conservatório de piano. Seu corpo todo havia sido deformado pelo amor (ou pelo ciúme): músculos à vista, mãos ásperas e nodosas, semblante duro e irritado e até mesmo os longos cabelos encaracolados agora eram ressecados e sem corte. Era um monstro. Um monstro avidamente esculpido através de anos de doença. Um monstro que carregava dentro de si outro monstro, pior ainda.
Não via Ele há aproximadamente 5 anos. Desde que o juiz expedira uma liminar impedindo de se aproximar d’Ele, de sua esposa e filhos. Seu advogado dissera que dera sorte de não ter sofrido uma acusação por homicídio quando jogara o carro em cima da mulher d’Ele. Preferiram conseguir essa liminar e então se mudaram pra onde Judas Perdeu as Botas. Foi a partir disso que a idéia veio crescendo dentro do seu peito.
Nem sabia mais se era amor o que sentia. Já se habituara a sentir essa dor constante e dilacerante. Era uma espécie de droga, reação química a que seu corpo sentia falta se privado. Já não se lembrava de como era ser de outro jeito. Como havia sido a vida antes d’Ele? Teria havido uma vida? E os primeiros anos, tão felizes. Depois as primeiras brigas, seus primeiros ataques. Ele a abandonara quando começara a fase dos arranhões e dentadas. Não entendia que Ela sofria de uma doença. Seu ciúmes era apenas mais um sintoma do TOC. Tinha que fazer aquelas cenas. Tinha que conferir seus bolsos, checar ligações feitas, escutar na extensão, verificar e-mails (sempre dava um jeito de descobrir sua senha), segui-Lo, subornar secretárias para conseguir informações, colocar detetives em sua cola. Ela sabia que aquilo não era certo, mas simplesmente não conseguia parar.
Procurara psiquiatras, analistas, terapias comportamentais, existenciais, florais de Bach. Por fim foi a um terreiro de macumba. Nada, absolutamente nada deu o menor resultado. Era imune aos remédios. Entrava sempre naquela porcentagem de pacientes cuja droga não surtia o menor efeito. Seu analista dizia que continuar naquele comportamento era uma “escolha”. Mas que diferença fazia? “Escolha” ou não, não conseguia parar. Os oito anos de análise – só com este último analista – não tinham adiantado de nada. Até que largou a análise. Largou os remédios. Largou o emprego de gerente de um banco. Largou amigos, família. Largou-se. Morava só em um cubículo alugado no centro da cidade. Vendera seu apartamento e usava o dinheiro pra pagar seu vício: detetives, subornos, viagens súbitas e tudo o que sua doença a obrigasse. Tinha que ter 24h de dedicação a sua causa. Não conseguia mais imaginar a vida sem isso, ainda que também não imaginava sua vida com Ele. Era apenas o dia de hoje que importava. Ele não importava mais, nem Ela, nem o amor e por fim nem a própria vida. Era o ato em si que importava. Foi então que decidiu.
De repente viu sua irmã que não via há três anos se aproximando. Ela lhe esclarecera tudo. Havia tentado o suicídio. Como nunca gostara de fazer nada pela metade, queria tentar apenas uma vez e esperava ter êxito. Tomara um caixa de valium com quase um litro de vodka. E trancara a porta com todas as trancas. Mas por infelicidade sua o prédio pegou fogo. Os vizinhos começaram a bater e vendo que ela não respondia arrombaram a porta. Acharam que ela havia sufocado com a fumaça e a retiraram dali. Havia médicos junto com os bombeiros com uma emergência improvisada na ambulância. Ela foi rapidamente atendida e levada pro hospital onde sofreu uma lavagem estomacal. E devido a sua constituição grande precisaria de muito mais do que isso para matá-la – tinham explicado à irmã.
Não conseguia sentir nada. Alívio por não ter morrido? Não. Raiva por a terem salvo? Também não. E seu monstrinho de estimação, a corroer as entranhas? Parecia silencioso.
Ele havia ligado, desesperado, para saber se Ela estava bem. Soube pois viu o incêndio na TV e sabia que Ela estava morando naquele prédio. Ninguém ia contar-lhe mas o médico deixou escapar, sem saber da missa a metade. Não se alterou ao ouvir o Seu nome. Não moveu um músculo sequer. Era ainda difícil entender o que acontecia ao redor de si e dentro de si. Ouviu o médico dizer que precisava descansar um pouco mais e que depois seria encaminhada para uma clínica de reabilitação, onde ficaria por algumas semanas. Mas que agora não se preocupasse e tentasse apenas descansar.
Descansar. Nos últimos 5 anos deve ter dormido uma média de 3 horas por noite. Eram sempre muitos afazeres consumindo seu dia. Planejamento e execução de estratégias mirabolantes. O médico fez todos saírem – além de sua irmã estavam duas grandes amigas, que não via há séculos e seu sobrinho – e ela ficou olhando pela janela, vendo a faxineira que limpava as vidraças do outro prédio. Foi sentindo uma coisa esquisita, que não sentia há anos. Uma espécie de compaixão para com aquela faxineira e aquele gesto tão simples. Viu a faxineira e a via realmente como um semelhante. Alguém que era feito de carne e osso, assim como ela. Que devia ter suas dores, alegrias e frustrações em maior ou menor grau. Não se achou mais a única pessoa do mundo a sentir um sentimento intraduzível em palavras. Não achou que sofria mais que os demais. Sentiu-se leve. Muito cansada, mas leve. Como depois de um dia de passeio a um lugar maravilhoso que nunca estivemos. Pensando bem, ela estivera em um lugar onde nunca esteve antes e encontrava agora com uma parte de si mesma que nem se lembrava mais. Nem sabia, aliás, se havia sido apresentada a ela algum dia. Adormeceu.

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