É quase um milagre o que faz com que sejamos amigos de certas pessoas e não de outras. Às vezes são as afinidades. Em outras, as diferenças. Às vezes você insiste em ser amigo de uma pessoa, mas simplesmente não rola. Em outras, a amizade vem sem qualquer esforço. Assim como qualquer afeto, a amizade tem razões que a própria razão desconhece.
Ela fez farmácia. Eu, comunicação. Ela ama matemática. Eu, mal conto até 10. Ela odeia cidades históricas, apesar de já ter morado em duas. Eu, faço doutorado em História. Ela odeia antiguidades. Eu amo. Ela adora mudanças. Eu, rotina. Ela já morou em seis cidades. Eu, em duas. Ela gosta de samba, mas não muito. Eu odeio samba, mas não muito. Ela gosta de conhecer gente nova. Eu gosto de conhecer as mesmas pessoas. Ela gosta de calor e praia. Eu de frio, muito frio, em qualquer lugar. Ela dirige desde os 13 anos. Eu, aprendi aos 21, mas sou uma tremenda barbeira. Ela demora duas horas pra se arrumar. Eu, cinco minutos. Ela é lenta. Eu, apressada. Ela gosta de esportes radicais. Eu também: andar de ônibus pelo Rio, ler James Joyce em alta velocidade...
Daniele é minha amiga há 18 anos, mais ou menos. Ela não foi com a minha cara de início. Eu fiquei intrigada com aquela baixinha emburrada e quis ser amiga dela só de raiva. Onde já se viu, não gostar de mim? Logo eu! Tão gente boa! Mas tinha um bom motivo, que só depois fui saber. Eu - sem saber, claro – ficara com o seu primeiro namoradinho. Na verdade também foi o meu primeiro beijo. Mas eles já tinham terminado, o que eu podia fazer?
Daniele morava em Andrelândia, cidade do sul de Minas, onde minha mãe nasceu e onde eu passava todas as minhas férias e feriados. Pode-se dizer que a minha vida ficava suspensa nos períodos de aula, esperando sempre a próxima vez em que eu estaria lá e que eu realmente viveria. Não só eu, mas vários amigos também. E Daniele tem um papel central nas minhas idas a Andrelândia.
Imaginem uma cidade que não oferece riscos de violência, as crianças podem brincar na rua até tarde, adolescentes entram em boates e bebem com qualquer idade ou simplesmente ficam na pracinha ao redor de uma fogueira, conversando até às 4 da manhã. Imaginem fazendas, cachoeiras e casarões coloniais. Agora imaginem uns 20 adolescentes juntos, de vários lugares diferentes, passando três meses de férias num lugar como esse. Por último, imaginem que esses adolescentes, além de tudo, têm uma casa a sua disposição. Sem adultos. Sim, era a cada da Daniele. E da Gisele, também (mas nessa época, a Gisele era a Irmã-Mais-Velha-da-Daniele e tínhamos medo dela. Até hoje eu tenho um pouco de medo dela, embora a adore). E isso representa muito da personalidade da Daniele. Sempre recepitiva, embora nem sempre a mais extrovertida das criaturas. Sempre hospitaleira, ainda que não seja exatamente uma Miss Simpatia. Na dela. Mas sempre ali.
Vizinha de lado: Carol (local). Vizinho quase de frente: Gustavo (casa da tia). Na pracinha: eu (casa das tias); Pim e Gugu (locais); Marcel, Bruno e Rodrigo (casa da avó e tias), Reinaldinho (casa de tias? Acho que sim); Vivien (local); mais adiante: Alex, Carla, Márcia, Denis, Alemão (todos locais); Itini (casa da tia. Preso recentemente por andar com um Pit Bull solto em Copacabana! Atualmente taxista. De vez em quando escuto alguém me gritando no meio do trânsito, em plena Senador Vergueiro, e é ele!). Esse era o núcleo básico. Claro que agregados foram se somando. Fab’s, Geíza, Érika, Fló, Davi, Gegê, Serginho, Rodliguinho, Leozinho... E nas festas a gente perdia as contas. E tinha a Gisele-Irmã-Mais-Velha-da Daniele e as amigas dela - mais velhas que a gente - que aos poucos foi amolecendo e se incorporando ao grupo.
Na verdade o período que tivemos a casa a nossa disposição não deve ter passado de três, no máximo 4 anos, até que Dona Aparecida percebesse que deveria alugar a casa para o bem da comunidade andrelandense. Mas o tempo cronológico não equivale ao tempo do coração. Mil vidas foram vividas ali. Me lembro como se fosse hoje de tardes passadas ali, conversando e rindo. De manhãs de ressaca, deitada na varanda, tomando sol. Da rede. Do sofá verde. E das festas, claro, regadas à Pinga do Dadá, onde sempre tinha espaço pra mais um, desde que devidamente equipado com uma meiota ou bomba*. E violão. E cerveja. E discos de vinil. Tardes de baralho – confesso que nunca gostei muito de jogos. E os reveillons? Pim cortando a mão tentando abrir uma champagne e eu e Carol subindo a rua do Areão, chorando, achando que ele ia morrer – logicamente, completamente embriagadas - ; Rômulo quebrando a tampa da privada; os Oratórios de Natal – inspirado em programas da TV de final de ano da Globo, tipo “Oratório de Natal de Bach”, onde pegávamos panelas e tampas e fazíamos o nosso oratório. Primeiros cigarros – hábito que eu odiei e nunca conservei. E a preparação dos reveillons? Os meninos ajudando a cortar legumes enquanto inventavam coreografias com os pés ao som da música. Denis e suas ressacas felomenais onde ele não pronunciava sons decodificados pela comunicação humana. Carol entrando escondida na Leiteria** pra roubar vinho. Bruno querendo aplicar glicose na própria veia devido ao seu elevado estado alcoólico. Gincanas! Ah, as Gincanas...a casa da Daniele se transformava em Q.G. da Marfagafos, lendária equipe tri-campeã. Fazer choconhaque no Carnaval. Fantasias de Carnaval. Frias noites de julho. Daniele, seu sofá e controle remoto, quase um organismo só, vivendo em perfeita simbiose.
Sobrevivemos. É verdade que com certas regiões do fígado e do coração pra sempre danificadas. Alguns alcoólatras, toxicômanos, algumas gravidezes no meio do caminho...Mas, nós sobrevivemos. Na ingenuidade da adolescência, achávamos que seria impossível que algum dia ou algo nos separasse. Muitas amizades ficaram pelo caminho, como latas de cerveja pelo chão, depois de uma grande festa. Outras permaneceram. A menina que antes não ia com a minha cara hoje é uma das minhas grandes e melhores amigas. Nossas mães e tias tinham medo da Casa da Daniele. Com razão. Mas o que é a adolescência se não podemos testar nossos próprios limites? E os pais deviam confiar mais na educação que dão aos seus filhos. A casa da Daniele foi um microcosmo, um ensaio da vida adulta, uma micro-sociedade regada a muita cachaça. E o resto é lenda. Só quem viveu.
Depois disso, Dani e eu ainda moramos juntas aqui no Rio. Saudades.
Quando eu olho pra trás e vejo tudo isso como parte de outra encarnação, quase, eu penso em como a vida segue trajetórias não lineares. Em como tudo se desenrola em um grande fluxo dialético e o que eu sou hoje é muito do que eu fui naquela época, ainda que eu seja completamente diferente. Sou um pedaço daquilo, somado a um outro tanto que resultou em algo que se difere de ambos. Não seria a mesma sem a casa da Daniele.
Como eu já disse em outros lugares, essa idéia de escrever um blog partiu depois de uma conversa com ela. A ela foi dedicado esse blog. Porque os grandes amigos são aqueles que sabem nos elogiar, nos impulsionando pra frente e mostrando coisas que sozinhos não enxergamos.
Hoje eu desejo, de todo coração, um Feliz Aniversário pra você, minha amiga! Dezoito vezes dezoito anos de amizade. Que a vida lhe sorria sempre com novas oportunidades e você saiba aproveitá-las.
“Peço-lhe que tente ter amor pelas próprias perguntas, como quartos fechados e como livros escritos em uma língua estrangeira. Não investigue agora as respostas que não lhe podem ser dadas, porque não poderia vivê-las. E é disto que se trata, de viver tudo. Viva agora as perguntas. Talvez passe, gradativamente, em um belo dia, sem perceber, a viver as respostas” (Cartas a um jovem poeta – Rilke).
Um beijo grande
* Meiota: garrafa pequena de coca cheia de cachaça. Bomba: big coke de cachaça.
**Leiteria, ao contrário do que o nome pode fazer pensar, não vende apenas leite, mas é uma espécie de armazém onde vive de tudo, inclusive bebida. Carol roubava da loja da mãe.
PS: Espero que tenha me redimido em função do sumiço do meu depoimento da sua página, desde que saí do orkut.
12 comentários:
Que texto lindo, Ine!!!
É bom ter uma amiga assim...
Parabéns à aniversariante que realmente é uma menina muito especial - doce, hospitaleira e linda.
Abraços e beijos,
Vivi
Esta escrito na Biblia: Quem encontrou um amigo encontrou um tesouro.
Parabens
Mother
Ficou lindo seu texto. Aposto que ela esta "toda toda", mas ela merece. Parabéns!!!!
Pela segunda vez me emocionei diante deste blog. A primeira, quando o vi nascer. Como eu, euzinha, podia te impulsionar a dividir com muitas pessoas anônimas ou não, esse seu grande talento pra escrever? Mas eu consegui. Lembro direitinho daquele domingo ai no Rio, depois de ler uma crônica no jornal (e parecia estar lendo uma crônica sua, pelo telefone e depois msn eu te pilhando pra escrever pra todos os jornais e mostrar pro mundo seu talento. Esse blog é meu grande orgulho!!!! Rsrsrsrs. E agora, vc consegue descrever nossa amizade nas palavras. E, realmente, diante de tantas diferenças ela sobreviveu. E tenho em vc uma grande amiga!!! O que eu poderia dizer, se não o meu muito obrigada por vc fazer parte da minha vida! Então, Aline, MUITO OBRIGADA por tudo!!!
Daniele
Carrie!!!! credito não!
eu debutei em andrelandia tb!!!!!!!!!ahahahaha
tenho boas amigas de lá...e já passei muitas férias ...como diz a mali, "que doido"!!!!
Como assim, Marília!? Minha mãe é de lá!! Explique-se! Quem são suas amigas! O mundo é mínimo!
Adorei o texto amiga e assim como a homenageada me emocionei bastante... lembrei de muita coisa... e dos nossos "Anos Incríveis"!!! Parabéns amigas, Dani pelo niver e Moc pelo talento e brilhantismo. Amo vcs duas!!!
Consegui!!! Acho q agora aprendi!!!rs
Eitcha, Fló! Finalmente! Agora não tem desculpa. O post do niver tá lááá em baixo.
É uma mocreiona, sem vergonhona, messss...mas q eu amo!!!
Sorry: "embaixo".
como assim... lá embaixo???
embaixo de onde???
quando???
o que???
como???
nao entendi... consigo escrever e ainda levo bronca?!!!
Não, Fló! Não...não tô dando bronca. O post a respeito do meu niver de 30 anos O título é "Festa de 30 anos". Foi isso q eu quis dizer.
Aline
Postar um comentário