sexta-feira, setembro 15, 2006

A vida como ela é...ou não!


Nelson Rodrigues dizia que o verdadeiro grito soa falso. Para explicitar, cita o exemplo, acho que uma das suas vizinhas lendárias - gordas e patuscas, como as machadianas - que, quando recebe a notícia da morte do marido, dá um grito tão gutural, tão profundo, que o grito sai com um tom de inumano. Como se o aparelho fonador tivesse adentrado territórios nunca antes percorridos. Nelson também dizia que a verdadeira dor não se assoa. Acho que essa é auto-explicativa. Quando se sofre realmente, o choro sai misturado com catarro, lágrima e vai caindo e molhando tudo. Não há tempo – e nem sentido – em enxugar. Quando as senhoras da Tijuca perguntavam “Por que você não escreve sobre pessoas normais?” ele respondia “mas eu escrevo!”. Ai, Nelson. Só você me entende, Nelson. Você e o Rubão. Tenho que correr antes que ele morra.

Tem certas histórias que eu relato aqui e as pessoas me perguntam se é verdade ou se eu exagerei. Em geral, as que eu realmente exagero as pessoas nunca percebem. As que realmente acontecem soam como inumanas.

Estava eu, hoje, parada no ponto de ônibus na Praia do Flamengo. Ia para Niterói. Temperatura: 38 graus. O ônibus não passava. Eu começava a fica tensa, pois era meu primeiro encontro com o meu novo orientador e não queria já chegar queimando o filme. Chega uma figura. Uma senhora. Vejo-a falando alguma coisa com um cara e de repente vem se aproximando. Vi que ela estava confusa se o seu ônibus passava ali ou não. Eu, como sou uma pessoa gentil, educada e paciente, perguntei pra onde ela queria ir. Ela respondeu que era pra Niterói. Disse que passava, sim, e que, aliás, eu também estava indo pra lá. O diálogo que se segue pode parecer inventado, mas não foi. Posso ter, no máximo, errado a ordem das frases:

Senhora: Ah, que bom! Eu geralmente venho de carro pra cá, mas minha carona está de férias e eu tive que pegar ônibus.

Eu: Ahn...

Senhora: Pra mim qualquer ônibus pra Niterói serve. Eu moro ali no Centro.

Eu: A senhora já está aqui há muito tempo?

Senhora: Não. Cheguei agora. Acabei de atravessar a rua. Qual é o ônibus mesmo pra Niterói?

Eu: 740.

Senhora: Ih, será que é esse? Não, 464...o de trás...433...

Senhora: Geralmente eu venho de carro, de carona, mas hoje a moça ta de férias. Você sabe se o ônibus pra Niterói passa por aqui?

Eu: [Pensando: Ô-ou...Houston, we have a problem!] Passa sim.

Senhora: Ih alá! Já vem...433... não serve...Eu não to acostumada a vir de ônibus pra cá. Eu venho sempre de carona, mas hoje a moça ta de férias...

Eu: [Pensando: ai, não...por que Deus, POR QUÊ??!!] Ahn...

Senhora: Ta um calor, né? Nem parece que já é inverno?Ih alá! Vem vindo! Triagem...

Eu: É.

Senhora: O ônibus pra Niterói passa aqui?

Eu: Passa.

Senhora: Você vai pra lá?

Eu: vou.

Senhora: Ta um calor, né? E já é inverno! Não quer sentar ali na sombra. Ih alá! Já vem...

Eu: É, vou sentar...[e sentei]

Senhora: Esses amarelinhos não servem, não, né?

Eu: Não.

Senhora: Eu sou manicure. Venho aqui fazer a unha de três clientes minhas. Elas moram ali [aponta pro prédio]. Eu sempre venho de carona...

Eu: [Pensando: mas hoje ela ta de férias!!!]

Senhora: ...mas hoje ela ta de férias. Eu até disse que pagava a gasolina. Mas ela viajou lá pra cidade que ela tem casa. Faz ela muito bem...

Eu: É, né...

Senhora: Você vai pra Niterói?

Eu: Vou...(suspiro)

Senhora: O ônibus passa aqui?

Eu: Passa...(suspiro).

Senhora: Eu não gosto de ficar em casa. Aí mantenho essas duas clientes. Muito ruim ficar em casa. Aí eu venho. Distrai a cabeça. Eu faço da mãe, das duas filhas... As filhas dela já tem filhos!! Eles me chamam de vó! Eu gosto...Aí eu venho...distrai a cabeça....sou sozinha mesmo! Tive dois filhos, mas eles morreram...mas Deus sabe o que faz, né?

Eu: Ôô!! Se sabe!

Aí ela resolve se sentar e abrir um chocolate.

Senhora: Ih, derreteu! Nem vou poder oferecer!

Eu: (Pensando: porque eu não sei!)

Senhora: Aqui...consegui! (parte um pedaço e come). Você aceita?

Eu: Não, obrigada!

Senhora: Eu não encostei a boca, não!

Eu: Não é por isso, não! Eu não como chocolate.

Senhora: Calor, né? Nem parece inverno...A senhora vai pra Niterói? Senhora, não. “Você”, porque você tem idade pra ser minha filha. Quantos anos você acha que eu tenho?

Eu: (pensando: humm...115?)...ah, não sei...

Senhora: 74!!

Eu: Nossa! Não parece! (pensando: parece 115...)

Senhora: Qual é o ônibus que vai pra Niterói?

Eu: 740...

Nisso eu fiz algo impensável, que vai completamente contra os meus princípios. Peguei uma van. Odeio vans. São caras, quentes e não cabem minhas pernas. Ainda tentei avisar a ela que era uma van e que também ia pra Niterói, mas quando eu levantei parecia que ela estava me vendo pela primeira vez. Nem me despedi direito e ela parecia não ter percebido.


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