sábado, maio 05, 2012

Lendo na calada da noite (e na falada da alma)


"Mais uma vez, e não seria a última, sentia-me meio estranho no mundo, como se tivesse acordado de repente e desconhecesse suas leis e seu significado. [...] Me sentia mais só do que nunca. E apenas mergulhando nos livros parecia reencontrar a realidade , como se a vida nas ruas fosse uma espécie de grande sonho de gente hipnotizada. Faltavam muitos anos para entender que nas ruas, praças e até nas lojas e escritórios de Buenos Aires havia milhares de pessoas que sentiam ou pensavam mais ou menos o que eu sentia, naquele momento: gente angustiada e solitária, gente que pensava no sentido e na falta de sentido da vida. [...]

E naquele reduto solitário eu me punha a escrever contos. Agora percebo que escrevia toda vez que era infeliz, sentia-se só ou em descompasso com o mundo onde me coubera nascer. E me pergunto se não é sempre assim, se a arte de nosso tempo, essa arte tensa e dilacerada, não nasce invariavelmente de nosso desajuste, de nossa ansiedade e de nosso descontentamento. Uma espécie de tentativa de reconciliação com o universo dessas criaturas frágeis, inquietas e aflitas que são os seres humanos [...]

Será [o homem] esse ser dual e desgraçado.  Esse ser dolorido e espiritualmente enfermo que indagará, pela primeira vez, o porquê de sua existência [...] E então seres descontentes, meio cegos e meio enlouquecidos, tentam recuperar, tateando, a harmonia perdida, com o mistério e o sangue, pintando e escrevendo uma realidade diferente da que, infelizmente, os cerca, uma realidade muitas vezes de aparência fantástica e demencial, mas que, coisa curiosa, acaba sendo mais profunda e verdadeira que a cotidiana. E assim, como se sonhassem por todos, esses seres frágeis conseguem superar a desventura individual e se transformam em intérpretes e até salvadores (trágicos) dos destino coletivo.

Mas a minha infelicidade sempre foi dupla, pois minha fraqueza, meu espírito contemplativo, minha indecisão, minha abulia sempre me impediram de alcançar essa nova ordem, esse novo cosmo que é a obra de arte, e terminei sempre caindo dos andaimes da desejada construção que me salvaria"

(Ernesto Sábato, em Sobre Heróis e Tumbas, p.580-1)



2 comentários:

Nayara disse...

Carrie.....vc, assim como o Michel Teló, me mata!

*piada podre modo off*

Que texto mais lindo...livro anotado no bloquinho de desejos!

Bj e ótima semana!

Nayara.

Carrie, a Estranha disse...

É lindo! Comprei no sebo de Porto Alegre, na feira da Redenção.