quarta-feira, abril 25, 2012

Moicanos de verdade

As coisas tinham ficado meio emperradas na minha vida. Eu estava trabalhando para a prefeitura como zelador em uma escola de ensino fundamental e durante o verão catava lixo no parque às margens do East River perto da ponte Williamsburg. Não sentia qualquer vergonha dessas atividades, porque entendia algo que quase mais ninguém parecia compreender: que havia uma diferença infinitesimal, uma diferença tão pequena que mal chegava a existir a não ser como criação da mente humana, entre trabalhar em um arranha-céu de vidro verde na Park Avenue e catar lixo em um parque. Na verdade talvez não houvesse diferença alguma (p. 95).


Certos livros chegam até nós como uma espécie de mensagem de náufrago, daquelas em uma garrafinha, colocada na esperança vã e infundada de que vá achar vida inteligente e te salvar. Ou melhor dizendo: talvez o náufrago seja você e a mensagem é o livro lhe comunicando o que você precisa ouvir naquele momento. Foi assim comigo quando li A visita cruel do tempo, de Jennifer Egan. Dica do meu amigo e colaborador (ainda que sumido, mas depois falo disso) deste blog, Denis. Ele disse: acho que você vai gostar. Ele tinha razão.

O livro conta a história de personagens que chegam naquele momento da vida em que se diz: então, é isso? Em geral, as pessoas carregam sonhos e expectativas quando são crianças/jovens. Não que sonhos e expectativas sejam privilégios de jovens, mas chega um determinado momento em que você se dá conta de que as bifurcações vão ficando maiores atrás de você do que a sua frente. Por exemplo, aos 5 anos de idade você pode sonhar em ser nadadora, astronauta, médica, bailarina clássica ou atriz. Aos 15, bailarina clássica e nadadora já são opções menos viáveis se você não fez nada a respeito. Aos 30 é impossível, a não ser que você crie um novo estilo de dança clássica - que não será mais clássica. Também já complica pra ser astronauta. Enfim, o livro fala sobre isso. Sobre o momento em que você tem que lidar com a sua vida do jeito que ela é, sem falsas expectativas. Tipo: é o que tem pra hoje e a outra alternativa é morrer, qual vai ser? O livro ganhou Pulitzer e foi saudado como uma linguagem inovadora e bla bla bla (só porque a escritora escreve um dos capítulos em power point), mas pra mim tudo isso é o de menos. Depois de Joyce é difícil inventar muita coisa em termos formais. O que me tocou no livro foi a acidez-desesperançosa das personagens que lutam para sobreviver a elas mesmas. Como uma das personagens diz: "Colegas de escola de quem me lembro estão fazendo filmes, fabricando computadores. Fazendo filmes em computadores. Uma revolução, vivo escutando as pessoas dizerem. Eu estou tentando aprender espanhol. À noite, minha mãe me testa com fichas" (p. 89).

O livro fala de personagens na meia idade dos 35-40 anos. Convenhamos, quantas pessoas vocês conhecem que viveram até os 100, 120 anos? Então que mania é essa de dizermos que meia idade é aos 50 anos? [Na verdade, esse pensamento não é meu. Alguém escreveu sobre isso, talvez João Ubaldo Ribeiro, mas não tenho certeza]. Meia idade é por volta dos 40 se pegarmos a expectativa média do brasileiro. E olhe lá. Sendo bastante generoso. Veja bem, não estou querendo dizer que quem chegou a essa idade está na metade da vida e não é possível fazer mais nada. Mas tem certas coisas que não dão mais tempo. Não adianta. Talvez o livro fale do último e derradeiro golpe acerca da vida adulta. Crescer é levar um susto - se me permitem, um susto do qual não me recuperei até hoje.

A estrutura narrativa é composta de contos que se entrelaçam. Alguns dizem que é um grande romance narrado de pontos de vistas diferentes. Pra mim são contos que se entrelaçam. As personagens são absolutamente adoráveis, porque humanas. E falhas. É um livro sobre fraquezas e pessoas que não deram certo - o que faz você se perguntar o que realmente é dar certo, será que eu estou dando certo? 

A autora utiliza comparações deliciosas como "Ted refletiu sobre a questão enquanto tomava três expressos no saguão do hotel, deixando a cafeína e a vodca se cumprimentarem em seu cérebro como  dois peixes de briga" e "a massa dourada e emaranhada dos cabelos de Charlie desaba sobre seus ombros como uma janela estilhaçada". Achei muito bom, isso. 

Outro recurso que eu gosto bastante é quando o autor fala do futuro da personagem em um parágrafo sem que o livro ou conto se centre neste futuro necessariamente. Do tipo: "trinta e cinco anos depois disso, em 2008, esse mesmo guerreiro vai ser envolvido na violência tribal entre os kikuyu e os luo, e morrerá em um incêndio. A esta altura, terá tido quatro esposas e 63 netos, um dos quais, um menino chamado Joe, herdará sua lalema: a adaga da caça feita de ferro agora pendurada em uma bainha de couro ao lado do seu corpo. Joe fará faculdade em Columbia e estudará engenharia para se tornar especialista em tecnologia robótica visual capaz de detectar o mais leve traço de movimento irregular (legado de uma infância passada vasculhando o mato em busca de leões). Vai se casar com uma americana chamada Lulu e permanecer em Nova York, onde inventará um equipamento de scanner que se tornará padrão para a segurança de multidões. Ele e Lulu comprarão um loft em Tribeca, onde a adaga de seu avô ficará exposta dentro de um cubo de acrílico bem debaixo de uma clarabóia".

Qual o momento de desistir dos sonhos e se conformar com a vida real? Até que ponto desistir de um sonho é se conformar com a vida real? Em que momento vale a pena fazer um recuo estratégico? Até que ponto a vida real exige que transformemos os nossos sonhos? Qual o limite pra se fazer isso sem enlouquecer? Ou, como diz uma das personagens da turma de punks que toca em uma banda: "Quando é que um moicano de mentira vira um moicano de verdade? Quem decide? Como é que você sabe que isso aconteceu?".

Esse é o problema. Ninguém sabe.

9 comentários:

Patricia disse...

Nossa, caiu como uma luva o seu texto. Estou passando por este momento exato com meus 35 anos. E o pior, aqui na França tomar um novo rumo na vida é retornar. Vou explicar, estou numa cidade pequena devido a transferencia do meu marido e mesmo tendo doutorado não consigo arrumar emprego, como gosto de estudar resolvi fazer um novo curso na faculdade e aí começa a saga. Primeiro que uma pessoa com Doutorado não é aceita numa graduação, porque tem muita bagagem :O
Bom, depois de cansar de ser chamada de superdiplomada por quase um ano pelos franceses, resolvi mentir o meu curriculo e agora estou tentando um Mestrado técnico, mas aí tem a minha idade, eles tem um pouco de receio com pessoas mais velhas estudando com alunos de 20 anos, segundo os nativos é muita bagagem de vivencia. E aí de vez em quando caio naquela de que tudo em excesso é ruim, inclusive intelecto! Como pode? ai, ser adulto é tão difícil, não?!

DENIS disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
DENIS disse...

Nossa Line!
Por isso não escrevi nada sobre o livro...
você falou tudo que eu achei dele.
Como não sou bom com as letras não falei.
Tô meio ocupado com o Botafogo, mas já já vou voltar pra falar umas merdas (como diria nosso amigo Reinaldo).
Amei o post nove de abril!
Lembrei demais do teu pai.
Depois comento...
bj.

Amana disse...

Pois é...
pensei tanto nisso ontem, conversando com um amigo. E quando a vida tomou um rumo direto e certo, e outras opções vão ficando esmorecidas? Ter filhos, por exemplo? Se 35 é a meia idade, parece mesmo um caminho sem volta abrir mão da maternidade. E o que é mais esquisito é que é uma decisão sem um luto específico, claro. Você vai afirmando essa "não-escolha" no dia a dia, nos compromissos que vai assumindo, nas decisões que vai tomando...
Sempre tem uma hora em que a gente se pergunta: tenho certeza disso?
Como você disse, e dá pra ter? Daquelas absolutas?...
beijo!

trinity disse...

Só digo uumacoisa, QUE TEXTO!

Carrie, a Estranha disse...

Oi Trinity!

Obrigada! Tá sumida! Ok, eu tb!!!! Rsrsrsrs...

Amana,

É, penso mto nisso. Muito, muito, muito.
Perfeito isso: "é uma decisão sem um luto específico, claro. Você vai afirmando essa "não-escolha" no dia a dia, nos compromissos que vai assumindo". E vc sempre acha q ainda via dar tempo, né? Afinal, a medicina tá aí, tem mulher tendo filho até uns 45...mas a gente sabe q é problemático, q nem todo mundo vai conseguir, q os riscos sempre aumentam...qdo é q vc sabe q realmente desistiu?

Denis,

Achei q tinha amarelado depois da primeira grande trollada. Rsrsrs...acontece. Desanima, não.

Patrícia,

Bate aqui, cálega. Tô numa situação bastante parecida.

Ai, ai, gente...

Anônimo disse...

è melhor eu não ler isso, posso cometer suicídio dps, ou não... mas acho q é um livro mto bom. Me identifico horrores Gladys Barata

Anônimo disse...

Texto nota 10, sempre passo por aqui e escrevi pouco até hoje, mas do alto da minha idade "inteira" que ná é 70 mas também não é mais "meia", digo a quem tem 35 anos que dá tempo sim !!! De fazer muitas coisas ainda, sem se importar com o que vão pensar os demais. Hoje vejo claramante que aquela suposta banalidade de que a idade está em nossa cabeça é a pura verdade. Gostaria muito de poder explicar melhor, mas hoje não estou inspirada, só reafirmo que 35/40 anos não podem ser limitantes para ninguém, acreditem em mim.
Bjos pra vc, Carrie !

Dalila disse...

Olá Carrie!
Adorei seu texto.
O livro até bem mais da metade me eu vontade de cometer suicídio, mas o final foi ficando mais interessante, como naquele capitulo em que a menina escreve toda aa história da família em PowerPoint. E como conseguimos enxergar as coisas através daqueles comentarios curtos naquela apresentação...
Gostei muuuito do seu texto. Talvez até mais que o livro, que me deixou melancólica pacas (é mesmo a porra da meia idade...)
Bjs e saudades de ti (estou sumida...)
Dalila