sábado, abril 30, 2011

"E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?"
(Nietzsche, F. A gaia ciência)


Podemos supor que, desde o momento em que uma situação, tendo sido uma
vez alcançada, é desfeita, surge um instinto para criá-la novamente e ocasiona
fenômenos que podemos descrever como uma compulsão à repetição 
(FREUD. “Conferência XXXII: ansiedade e vida instintual”, p. 132)


Ooops, I did it again
(SPEARS, Brtiney)


Outro dia me peguei pensando: "estou velha demais para...". Daí parei e me corrigi. Na verdade, "sempre fui velha demais para...". Ou talvez esteja numa fase "velha demais para" e "nova demais para me achar velha". Aliás, quando você ouvir alguém dizer "tô ficando velho", acredite: trata-se de alguém novo. Afinal, velhos estão preocupados demais em se manterem vivos pra perder tempo pensando se estão ficando velhos. Não que a velhice em si me incomode. Não mesmo. Me incomoda a proximidade da morte - que a velhice traz pra muito perto.

E muito, muito mais do que tudo isso, me incomoda uma aura de deja vu que paira na minha vida - ok, não é a melhor palavra, mas vamos lá. Nos mínimos e máximos detalhes. Nas menores conversas. Nas pessoas. A sensação de que eu já sei o que o outro vai dizer. Que eu conheço. Que eu sei o que vai acontecer. O que é ridículo. Porque as pessoas estão sempre nos surpreendendo. Mas eu tenho essa sensação desde. Sempre.

E muito, muito, muito e muito mais do que tudo isso é a sensação de que eu me repito. Para mim mesma. Nos mínimos detalhes. Eu me prego peças o tempo todo. Eu caio nas minhas próprias armadilhas o tempo todo. Num looping infinito. Como uma criança que precisa repetir mil vezes a mesma brincadeira, mesmo sabendo do final. Como uma reprise de Friends, onde mesmo sabendo o diálogo seguinte, você ainda ri. E ri milhares de vezes, quantas vezes você assistir. 

Essa fode comigo. 

Pensar que eu preciso sempre andar três passos e voltar quatro; correr cinco quilômetros e tropeçar na linha de chegada.

Claro, nunca se volta exatamente ao mesmo lugar, nunca se retrocede exatamente o mesmo tanto que se andou. Há sempre um ganho neste percurso. Já consigo ver as coisas em uma espiral, pelo menos e não mais uma linha reta. Mas - como já disse umas 498.276 vezes aqui, me pego sempre a espiar meu eu no orbital da frente, pensando: humm...eu já tava ali, pra que fui voltar?

E eu me perco em atividades absolutamente inúteis enquanto o essencial é varrido pra debaixo do tapete. Pra daqui a pouco. Pra mais tarde. Pensando que vai dar tempo. Que vai dar certo. Que depois eu ajeito. Ou não pensando. Simplesmente adiando, porque foi assim que eu aprendi a ser. Vendo os dias escorrerem.

A única coisa que me surpreende em mim mesma é a minha enorme capacidade em me repetir. E assistir à própria repetição, mesmo sabendo que não é legal.

Como um Estragon que quer acreditar que algo vai acontecer, que alguém vai chegar, ainda que bem no fundo saiba que é mentira (ou ao contrário: quer acreditar que nada vai acontecer, ninguém vai chegar, ainda que bem no fundo saiba que é mentira).

8 comentários:

Maria Clara disse...

Seu post de hoje me tocou especialmente. Às vezes, acho que não conseguirei sair do mesmo processo de repetição. Percebo o processo, mas retomo (quase sem perceber ou percebendo?.
É engraçado pensar sobre isso pq nessas hs parece q há um sabotador dentre de nós que não nos permite seguir em linha reta. Ah! Como esse post me fez pensar em coisas que buscava ocultar!
Abraços!

Luana disse...

O post foi muio bom! muitas coisas para alar, que mereciam uma cerveja e uma cadeira confortavel...

Mas "Ooops, I did it again (SPEARS, Brtiney)" foi O-T-E-M-O! hahahahahahahaah

Carrie, a Estranha disse...

Maria Clara,

Todo nós estamos condenados repetir nossos próprios erros eternamente. Alguns mais, outros menos. Alguns com erros piores, outros com erros melhores.

Luana,

Hehehehe...é, eu tb gostei (daquelas q escreve e gosta do próprio texto).

Bjs

Luiz Asp disse...

Estamos condenados a repetir os mesmos erros? Sei lá, eu sei que tem merdas que já fiz 1000 vezes e ainda farei mais 1000, mas acho que a minha (criatividade? inépcia? loucura?) é tanta que eu sempre arranjo um jeito novo de pisar na bola, rs...

Ila Fox disse...

Lembro quando eu me encontrava neste loop infinito, vi uma matéria no Fantástico falando sobre budismo e cheguei a anotar no meu diário as 3 regras básicas que eram:

- Se livrar do ciclo vicioso
- Desapego
- Tudo passa

Interessante perceber que nós mesmos nos sabotamos... só o fato de vc reconhecer isso acho que já é meio caminho andado.

Gazzy1978 disse...

Total "Feitiço do Tempo", nénão?

Anônimo disse...

Eu diria que esse post é bem corajoso no sentido de abordar nossas limitações de frente mas sabe o que pode ser consolador ? Que repetimos também os acertos e para me sentir menos imbecil, eu prefiro essa versão, a dos acertos ! Mesmo sabendo que erros e acertos talvez não passem de mera retórica, afinal a vida não é facil para ninguém.

Natália disse...

Como eu queria vc como minha paciente, caso eu tivesse um consultório...te atenderia de graça! Belíssimo post....que coragem de se conhecer assim!