segunda-feira, agosto 31, 2009

Sinais do medievo no Condado de Gotham


Essa semana, aqui em Gotham City, um caso chamou a atenção da população, obtendo destaque na mídia local. Uma menina de três anos foi morta, em um bairro muito pobre da periferia, espancada pelo padrasto, de 20 anos. A mãe, de 18 (notem a pouca idade dos envolvidos), já grávida novamente (cuja foto no jornal parece ser a de alguém com não mais do que 40 anos), tinha ido ao médico e deixou a criança na cama com o padrasto, dormindo. Ao voltar, a mãe encontrou a casa fechada. Foi atrás do marido e ele voltou, dizendo que tinha deixado a criança dormindo. Ao entrar, ela viu a criança gelada, com sinais de ferimentos, sem a calcinha que se encontrava suja de fezes e no chão. Ao levar a criança para o hospital e proceder aos exames constatou-se a morte da criança por espancamento. Não houve sinais de violência sexual. A hipótese é de que a menina tenha feito cocô na cama e o padrasto tenha batido nela até a morte.

A mãe, então, acusou o marido, padrasto da menininha, de tê-la matado. Ele, que já tivera envolvimento com drogas e outras contravenções, era desempregado e trabalhava para um traficante. Depois da denúncia, ele fugiu. A polícia tentou capturá-lo, mas supostamente não conseguiu.

Diz o jornal que o traficante para o qual ele trabalhava o prendeu. Um aluno meu que trabalha na TV local disse que os traficantes ofereceram 1.000 pelo homem vivo. O fato é que, de um jeito ou de outro, o cara foi entregue aos traficantes. Que fizeram o quê? Entregaram-no à população local. Precisamente uma turba enfurecida de mais de 300 populares, incluindo crianças que espancaram o homem com diversos objetos, deram facadas e, por fim, com ele ainda vivo, empalaram-no. Sim, empalaram. Aquela prática medieval que consiste em introduzir um objeto perfuro-cortante pelo ânus da vítima, atravessando todos os seus órgãos vitais, até que a estaca ou o objeto em questão saísse pela boca. A primeira cena do filme Drácula de Bram Stocker, do Copola, mostra corpos pairando dependurados por estacas depois de uma batalha contra Vlad Dracul,
personagem que de fato existiu e foi um dos que auxiliou na expulsão dos turcos otomanos da península Ibérica no século XV, também conhecido como “o empalador” – e no qual Bram Stocker teria se inspirado para escrever Drácula. Voltando à nossa história, a polícia só então chegou, dispersou a multidão e levou o homem para o hospital onde deu entrada já morto.

Os jornais locais de hoje trazem a informação de que possivelmente ninguém será indiciado pela justiça no caso da morte do homem, já que em uma multidão mais de 300 pessoas fica difícil encontrar o culpado. O delegado encarregado do caso condenou a ação da turba delirante, mas disse que provavelmente o caso será arquivado. Bem como a dúbia postura da polícia que parece ter assistido ao linchamento antes de salvar a vítima.

Das nossas casas com TVs de plasma com canais a cabo, aparelhos de DVDs, computadores (no plural) com banda larga, I-pods, I-phones, I-meu-deus a barbárie por vezes é só uma notícia na página policial. De vez em quando, cada vez mais frequentemente, ela resvala em nós. Respinga na toalha branca da mesa. Penso nisso enquanto caminho pelas aparentemente pacatas ruas do bairro onde eu moro, considerado um bairro de classe média alta, com casas amplas, de gramado na frente, de onde saem pessoas com seus carros do ano. Lembro da frase do William Gibson, presente no livro que estou dando em um dos meus cursos, que diz: “O futuro já chegou. Só não está distribuído de forma equilibrada” e penso que ele tem razão, mas não da forma como ele pensa. As pessoas dos bairros das periferias também têm carros (comprados com o dinheiro suado e economizado), também têm aparelhos de DVD (comprados em 36 meses nas Casas Bahia), também têm TV a cabo (o famoso gatonet, como tinha a nossa ex-empregada), aparelhos de MP3 (genéricos, comprados no camelódromo da cidade ou mesmo adquiridos de forma ilícita. Não, não estou querendo dizer que na periferia haja mais ladrões. Ladrões há em toda parte. Apenas as contravenções são diferentes. Os ladrões do meu bairro não vão roubar um MP3. Eles roubam coisas muito maiores); podem não ter computadores, mas freqüentam a lan house do bairro e assim sucessivamente. Mamãe ficou espantada esses dias quando a nova empregada, moradora de um bairro pobre, disse que se arrependeu por não ter comprado um celular com blue tooth, já que gosta de ouvir sua musiquinha – baixada pela cunhada, que mora em cima e tem computador, ainda que ela, a nossa empregada, esteja planejando comprar o seu até o fim do ano, mas também pensa me comprar um carro, então não sabe se vai dar pra fazer as duas coisas.

E o que essas duas coisas têm a ver? Tecnologia é sinônimo de esclarecimento? Claro que não. Apenas peguei como exemplo a frase do Gibson para mostrar como de fato o futuro não está bem distribuído. Mas não da forma que ele pensa. Em termos tecnológicos, nós, moradores dos grandes centros, não estamos tão diferentes assim uns dos outros – ou se estamos não é tanto por questões financeiras, mas culturais. Claro que se você fala em miséria, em interior do Norte e Nordeste, África e Ásia, a coisa muda bem de figura. Mas estou querendo dizer como de fato o futuro, enquanto Esclarecimento ou Iluminismo, do qual somos todos devedores, ainda não chegou para todos – e aí não importa em qual classe você está. E, é possível que ele nunca chegue. Em pleno século XXI somos brindados no café da manhã com práticas do baixo medievo. Mas, como diriam Adorno e Horckheimer, o Iluminismo carrega em si o germe da barbárie. Sendo assim, seria inerente a qualquer ideia de Iluminismo e Civilização (sem querer, com este último adjetivo, parecer etnocêntrica, mas, convenhamos que empalar outro ser humano vivo não é lá muito civilizado seja qual for a sua cultura. Relativismo cultural tem limites) a própria ideia de destruição. Por isso é a Dialética do Esclarecimento o título do livro dos caras (e quem dá aulas em universidades particulares compreende bem esse conceito. Há momentos em que saio completamente frankfurtiana das aulas. Sim, eu. A senhorita “u-hu-vamos-ver-big-brother-para-compreendermos-uns-aos-outros”. Só que pimenta no olho dos outros é refresco. Quando é no nosso, arde. A Indústria Cultural despejada em um solo árido causa estragos que nenhum Steven Johnson
vai me convencer do contrário. Nããão, Steven Johnson nunca foi a Esculacho, se não ele saberia o que um bom clássico – ou a falta dele – faz na cabeça de um garoto de 17 anos. Ainda que a culpa não seja dos videogames, claro).

Mas, eu sou mesmo uma velhinha. De uns 200 anos, mais ou menos.

18 comentários:

Alexandre Avelar disse...

Gostei muito do seu texto. O assustador - aliás, nem tanto assim - é que a maior parte das pessoas apóia isso. E aí não tem classe social na hora de apoiar. A barbárie unifica. É possível ver a madame e a empregada concordando e dizendo que o "cara mereceu aquilo mesmo".
Eu fiquei com muita raiva de Volta Redonda por isso. Está certo que esta merda poderia ter ocorrido em qualquer lugar do Brasil - mas não em vários lugares do mundo. Acontece que VR sempre gostou de se afirmar como a de "melhor qualidade de vida do Sul Fluminense". Melhor qualidade vida de cu é rola. Boa parte da população da cidade apoiou esta merda e um lugar em que as pessoas pensam assim definitivamente não pode ser bom.
Talvez nenhum lugar do Brasil seja então. Mas VR eu já tenho a certeza de que não é. Se eu já não tinha mais muito apego à cidade natal, agora acabou o restinho.

Luís Miscow disse...

Excelente.

trinity disse...

Carrie,

Semana passada aconteceu algo semelhante na minha cidade (bem mais leve vamos assim dizer).

Um homem foi roubar uma bicicleta e foi surpreendido pela proprietária q começou a gritar, neste momento as pessoas batem no homem ocasionando uma fratura exposta. A polícia chegou levou para o hospital de depois p/ o CDP.

O ocorrido virou logicamente matéria pela rádio até td bem, quando o ilustre comunicador e vereador solta:
"Não desejo mal pra mim, mas bem feito!"

Eu mereço ouvir isso na rádio antes das 8h da manhã!!!

Ila Fox disse...

Olha, eu entendo o que a população fez. Eles sabiam que se deixasse na mão da "puliça" aquilo não ia dar em nada, então resolveram fazer justiça com as próprias mãos.

Eu faria o mesmo com o infeliz que me roubou.

Em Abril, um pouco antes de eu me mudar de Londrina, minha casa foi furtada num fim de semana em que eu não estava. O FDP além de levar minhas coisas, fez cocô no meu quintal e comeu coisas da minha geladeira.

O pior nem foi o dano material, foi o trauma que ficou. Em 7 anos morando sozinha nunca passei por isso. E saber que um sujeito andou dentro da sua casa, fuçou nas suas coisas. Viu suas fotos nos porta retratos é de acabar com seu dia. Com seu ano.

Claro que a policia não apareceu, quando, nos dias seguintes, vi um cara suspeitíssimo passar na minha rua. Minha vontade foi sair correndo atrás dele e dar um tiro naquela cabeça drogada.

Mas enfim.

Vivemos num país onde caras como aquele Champinha (que matou e estuprou uma garota em 2003) vai ser solto.

Se eu fiquei revoltada com um simples furto, tenho medo de pensar do que eu seria capaz contra alguém que mata alguém da familia.

É por isso que até entendo a barbárie desta gente.

Ila Fox disse...

Agora uma coisa que não entendo é depredação.

Estes dias no Jornal nacional eu vi um povo que entrou numa delegacia e acabou com tudo.

Só via gente saindo de lá dentro com ar condicionado, equipamentos da policia. Arrebentaram o carro da policia, desmontaram e levaram tudo...

Isso me soa muito animalesco. As pessoas destruindo algo que foi feito pra elas.

Carrie, a Estranha disse...

Alexandre,

Sim, sem dúvida. Eu ia dizer isso , aliás, mas esqueci. Que se perguntassem pra madame ou pra empregada provavelmente as duas concordariam - ainda que aqui em casa, tanto mamã qto a criadagem concordaram q tratou-se de um vandalismo.

Mas eu duvido que Uberlândia seja melhor. ;)

Luís,

:)

Trinity,

É foda...

Ila,

Eu compreendo quem faça isso, individualmente. Quem, atingido por algo de tipo, saia em busca de justiça com as próprias mãos. Mas não defendo como prática.

Que curioso! Vc mataria alguém que roubou suas coisas e não consegue entender quem depreda uma delegacia? Pelos mesmos motivos q vc quer matar o cara que tentou te roubar. As pessoas querem ter coisas. Isso te soa animalesco? E querer matar um ser humano q entrou na sua casa não? (ok, entendo o sentido de invasão que vc sentiu, de ter alguém ali nas suas coisas, mas ainda assim não vejo motivo pra querer matar).

Alexandre, isso prova bem o nosso argumento.

Bjs a todos.

Alexandre Avelar disse...

Ah, certamente Uberlândia não é melhor neste aspecto, mas talvez seja em outros. E aqui tem uma universidade legal para eu trabalhar :)

Ila Fox disse...

Não entendo quem depreda uma delegacia por que a delegacia não fez nada de ruim para a pessoa. Teoricamente ela está ali para te proteger (mesmo que proteja mal, hehe).
Na TV eu vi que além dos furtos que cometeram na depredação todos os presos fugiram.

Ok. Talvez eu não mataria, dava uma surra bem dada. Ô se dava.

Eu sempre torço para pegarem o bandido, assim como torço para o touro acertar o toureiro. Eu vibro quando a população perde o medo do ladrão e o ataca.

Quando entraram na minha casa, estranhamente ninguém viu nem ouviu nada. O povo tem medo demais de agir, por isso sinto uma certa admiração por quem tem coragem de fazer algo contra estes marginais.

Em 2007 quase fui roubada dentro de casa, eu estava lá fazendo a faxina, era de noite, quando reparei que meu gato entrou assustado pela porta. Olhei lá fora e tinha um sujeito parado no corredor (eu morava nos fundos). Eu sabia que se corresse eu demonstrasse medo eu estava na mão dele. Por isso eu fui na direção do meliante e mandei ele ir embora da minha casa, e ele foi.

Em Londrina um taxista foi assaltado. Enfiaram o cara no porta malas mas ele conseguiu fugir. Perseguiram o ladrão e deram uma surra dele. o Cara ficou internado no hospital e morreu.

Quem tá nessa de roubar sabe do risco de encontrar alguém mais esperto que ele e se dar mal. O duro é que as pessoas ainda tem muito medo de ladrão.

Ila Fox disse...

Ah, depois desse episódio do cara que entrou em casa comigo dentro eu fiquei mais esperta.

Sempre deixava as portas trancadas a noite, e coloquei graxa no portão (em cima, impedindo ele de subir).

Também comprei um spray de pimenta e deixava uma cabo de vassoura com uma lamina na ponta "no jeito" pra caso o cara resolvesse voltar de surpresa. :-P

Sou baixinha e magrela, tenho que me defender como posso. Não teria medo nenhum de furar aquele mané até virar uma peneira. O problema seria limpar o chão sujo de sangue depois. hoho

Ila em modo Kill Bill.

Nayara disse...

Muito bom o seu texto, muito bom mesmo..me fez pensar em várias coisas...relatei no meu blog um episódio de violencia que presenciei na semana passada, sobre o espacamento de um ladrão...continuo a achar que a cada vez que isso ocorre, escancaramos um pouco mais os portões do inferno...e nos aproximamos do que tanto queremos afastar...

nervocalm disse...

Muito, muito assustador.
Obrigada, Carrie, por este post.

Carrie, a Estranha disse...

Ila,

Hahahaha... técnicas Ninja, hein Ila? Lãmina na ponta do cabo de vassoura? Vou adotar qdo estiver sozinha. Acho q se defender qdo alguém entra na sua casa é diferente. Mesmo pq vc não sabe o q o cara vai fazer com vc, né?

Oi Bracho, oi Bel!

É a treva.

Bjs

Karine disse...

Só para completar a histinha de Gotham City, o padastro foi até o hospital com a mãe e todos o viram por lá. Quando os médicos foram comunicar à família ele ficou "desesperado" e então figiu. Ele tinha esperença de sobrevida... Acredita??

Carrie, a Estranha disse...

Karine,

Acredito. Mas o mais bizarro, pra mim, foi o linchamento da população.

Greice disse...

Carrie, que situação mais animalesca... Aliás, nem isso, acho que poucas espécies de animais agiriam dessa forma.
Não concordo com nenhuma forma de violência. Talvez pra me defender ou aos meus filhos, e só.
Mas acho que esses atos são originados na descrença da população no trabalho da polícia. A classe média/alta ainda tem alguma esperança quando faz alguma denúncia, tem acesso à advogados. E a classe mais baixa? Sabe que nada acontece mesmo.
Mas é uma pena que com a "evolução" da humanidade ainda tenhamos dessas...
Beijo

Cris-RJ disse...

Carrie, ouvi esta estória na rádio Real FM (respondendo sua pergunta no texto da *bleargh* lagartixa, moro em Resende). Absurdo!! Absurdo a morte da criança, onde cada vez mais morrem dentro de casa vítimas dos próprios pais; absurdo o empalamento; absurdo qualquer tipo de agressão e violência. Eu cheguei a conclusão que o homem somente aprendeu a andar ereto...de resto, continua bronco e (ir)racional. Medo, muito medo.

trinity disse...

Carrie vc já viu os vídeos da "VERITAS"????

Nayara disse...

Carrie....cadê vc e seus ótimos textos? Nada de novo em Gotham...nem pérolas dos alunos...nada?! rs

Abstinência de leitura do blog...rs