quinta-feira, julho 23, 2009

As trombetas do Apocalipse


Como vocês sabem, parte da minha infância e adolescência foram passadas em Andrelândia, Minas Gerais - como se morar em Gotham City não fosse “roça” o suficiente. Então digamos que eu vivi um mundo povoado por seres de fazer inveja ao Gabriel Garcia Márquez, ao Pedro Almodóvar e ao Nelson Rodrigues (juntos). Tias-avós que conversavam com santos pra consertar garrafas térmicas quebradas, tios que jogavam cristais do alto de um sobrado só para ouvir o barulho e outros tantos que ameaçam Deus a só morrer quando bem quisessem. Um avô que era o relógio da cidade, tamanha a periodicidade dos hábitos. Anões que moram em coqueiros. Gente que conversa com os mortos. Mesas de café enormes, que ficam postas o dia inteiro, cheia de quitandas feitas por hábeis cozinheiras e adultos que conversam ao seu redor. E você nunca será um adulto, até que todas as pessoas mais velhas que você tenham morrido. Até que isso aconteça, você será sempre uma criança. Portas abertas, sem trancas, sem chaves; janelas sem grades e hortas que não tem fim, com mangueiras centenárias e esclerosadas, que esqueceram de dar manga. Tias que vem em trios e moram em casas de longos corredores de madeira onde gerações de sobrinhos correm, fazendo um mesmo barulho que parece ecoar através das décadas.

Eis que, nessa pequena cidade, assim como em tantas pequenas cidades, existe um serviço de informações e avisos feito pelo alto-falante da igreja. Aviso de morte, perda de carteira, celular, missa de sétimo dia, oportunidades de emprego, tudo isso é anunciado no altofalante da igreja (perdeu o hífem? Mas que inferno! Não sei escrever mais). Como boa cidade do interior, ainda mais do interior de Minas, a Igreja Católica possui um enorme peso. Daí a sede da Igreja servir como um pólo difusor de informação.

E quem dá os avisos é o sacristão. Durante parte da minha vida, me lembro de um único sacristão, o Zé Sérgio. E se fosse só o aviso, beleza. Mas os avisos eram sempre precedidos de músicas. Clássicas. E, como diria Otto Lara Resende, “o mineiro só é solidário no câncer” (pobre Otto, a frase teria sido atribuída a ele pelo Nelson Rodrigues). Pois bem, a música de anúncio de morte era a música mais sinistra do mundo. Era um violino assustador. Diz a Dedinha, minha tia, que é parte de um suíte russa, chamada Olhos Negros, ou algo do tipo. O fato é que a música foi rapidamente apelidada pelos moradores de “defunteira”. Começavam os primeiros acordes, e você sabia: anúncio de morte. Ou como diria minha priminha Maria Clara, no alto dos seus dois anos: moeu um! Quedo! (tradução: morreu um! Credo!). Imaginem quando é alguém da sua família morrendo? Sem contar que o aviso era sempre: “Maria da Silva, mais conhecida como Sinhazinha...”. Mas engraçado era quando o cara não tinha apelido: “José da Silva, mais conhecido como José”. Quando a música era outra, já se sabia que era outro tipo de aviso. A de morte era sempre uma específica.

Zé Sérgio morreu há pouco tempo – coisa de 5, 8, 10 anos...não sei. Contrataram uma sacristã. A mulher é toda chófem. Anda de moto e tudo. Não sei porque associei os serviços de sacristia ao sorturno Zé Sérgio e ainda estranho ser uma mulher mais nova que eu assumir tais tarefas. Aí mudaram a “defunteira”. Acho que ainda um pouco antes do Zé Sérgio morrer. Começaram a dizer que a música era muito mórbida. Agora tocam outra. Que...é mórbida do mesmo jeito. Pensem comigo: uma música que seja tocada com a finalidade de anunciar as mortes, não pode NÃO ser mórbida! Pode ser Chiclete com Banana que o troço vai ser mórbido, gente!

E os avisos são sempre de manhã. Aí tá você lá, lutando contra a ressaca, tendo flashes da noite anterior, pensando se tenta vomitar ou toma uma Novalgina – ou faz as duas coisas, mas a Novalgina tem que ser depois, do contrário ela será eliminada, tendo que raciocinar tudo isso rapidamente - e dá-lhe a defunteira! O padre deve fazer de propósito, só pode ser. Para que a culpa judaico cristã lhe corroam a alma, seu herege pecador – porque o fígado já está podre. Você está ali, a depressão comendo, suando frio, achando que vai morrer, tendo um ataque de pânico, com uma mão no Frontal e a outra no Engov, prometendo aos céus que nunca mais vai beber se aquela sensação de morte iminente passar e a defunteira em cima. Você promete conversão total e imediata e doar todos os seus bens para Santa Madre Igreja se tudo aquilo passar. Começa a rever a vida, pensar na morte...

Daí passa. A música pelo menos. Você volta a dormir, negocia uma rendição com o pessoal do estômago, intestino e fígado, consegue se arrastar até o copo dágua mais próximo, toma duas neosaldinas e volta a dormir. Dá meia hora e vem um aviso: “perdeu-se um celular ontem, no parque de exposições. Quem encontrar, favor devolver no salão paroquial”. Vá pra puta que o pariu, né? O sujeito fica bêbado, perde o celular e eu que tenho que ouvir o anúncio no dia seguinte? E aí não pára mais: é missa de sétimo dia, emprego, a família agradecendo as mensagens de solidariedade e todos os reclames paroquiais. Por fim, quando eles não tem mais o que colocar, botam músicas religiosas! Você, que chegou em casa às sete e meia, que tenta, como dificuldades se lembrar das coisas (e esquecer de tantas outras), passa a manhã atormentada pelos avisos da comunidade que duram entre umas nove até as onze. Aí você desiste e resolve levantar.

E não interessa onde quer que você more. Afinal, Deus está em toda a parte e o alto falante da igreja te acha até no inferno.

12 comentários:

Debora Helena disse...

Carrie,
Li seu blog com frequência durante um tempão, há um ano e pouco. O último post que li foi o em que você falava sobre a ida aos EUA, depois do suspense angustiante.
Maravilhoso!
Agora estou mais distante da vida virtual, mas passei aqui e vi que ficou melhor ainda; parabéns!
Seu humor é ótimo.
Pura alegria ler alguém escrevendo tão bem. *___* Fico encantada.
Até suas reclamações são boas, hahaha... Essas dúvidas hiponcondríacas foram ótimas.

Beijos!

trinity disse...

Nossa que post mais engraçado, adorei.
Aqui onde fica minha residência (interiorrrr) existe algumas coisas similares, mas aqui é um locutor que tem seu seus comunicados transmitidos em algumas praças, mercados e tals.
Ele é fanático pelo RC muito mais que muitas mulheres com poster dentro do seu estúdio e tals, hilário!
Além disso tem as gravações...uma q ele conta a hist. dos ovos que não se quebraram em um acidente de carro onde todos os passageiros faleceram(uma lenda que rola na net).
Tem também a gravação dele narrando que todos(famosos) que duvidaram de DEUS morreram tragicamente.

E é lógico tem os achados e perdidos, aviso de quem faleceu, missa de sétimo dia, de mês, de ano...e a oração das 18h. Não é um sacristão, entretanto é tão "mala" quanto.

Anônimo disse...

NO LINE. EU JÁ PASSEI MUINTA RESSACA ESCUTANDO O ZÉ SÉRGIO. QUEM O ENCONTRAR OU VAI ENCONTRAR...
PERDEU-SE UMA CARTEIRA...
UM PESADELO.
BJ.
DENIS.

Unknown disse...

Se vc tivesse morado em andrelandia, como eu morei, conheceria outra particularidade do Ze Sergio. Ele falava "se perde-se uma carteira entre a Igreja e o Cristo". Como assim, meu Deus?
E aquelas musiquinhas p chamar as cças p missa das 10 no domingo. E olha que nem bebo mais!

Ila Fox disse...

Carrie,
Em Santa Cruz do Rio Parrrdo tinha disso! eu tinha medo quando era criança.
Pra falar a verdade até hoje tenho medo. O_o

Carrie, a Estranha disse...

Ila e Trinity,

Pra vcs verem, isso é uma particularidade do interiorrrr.

Denis,

É, vc sabe o q eu falo.

Milema,

HAHAHAHAHA...Entre o Cristo a a Igreja? Não dá pra ser amis específico, não?

Oi Débora!

Muito obrigada pelos elogios. Ah, some não! Gosto de leitores e gosto de comentários!

Bjs

Júlio César Meireles de Andrade disse...

"Perdeu-se um molho de chaves, contendo uma chave", pérolas do Zé Sérgio;
ou quando de uma campanha para vacinação contra Polio em que era pra avisar que o Zé Gotinha (personagem da campanha) estaria em todos os postos da cidade, e o Zé Sérgio lê, no alto falante, que o Zé Godinho( popular dentista e político da cidade) estaria em todos os postos...
Dizem que o Zé Sérgio tinha o anúncio do próprio enterro gravado em uma fita K7 em sua casa...

Cinthya Rachel disse...

acha mesmo... agora a igreja aqui do bairro resolveu tocar Ave MAria TODOS os dias as 18:00. eu disse TODOS os dias. (eu adoro o jeito que vc escreve, parabens, que talento vc tem!)

Carrie, a Estranha disse...

Oi Cinthya!

Obrigada!

Ave Maria eu até gosto.

Cósnis,

Essa eu não sabia! Muito bom! Hahahaha

Stella disse...

Huahauhauhau... meodeos!
Realmente, não sei como você ainda não escreveu um livro de contos sobre sua cidade. rs

Beijos

Anônimo disse...

Que eu te acho demais vc já sabe, mas neste post vc se superou, e disse tuuuudo o que eu gostaria de falar sobre a incoveniência, digamos assim, dos comunicados religiosos e afins. Em PV tb tem disso, minhas visitas que o digam,pq o alto falante é voltado para o ouvido (literalmente) de quem está dormindo. Teve uma (visita), que depois de tentar retomar o sono,desistiu, falando que a igreja passou a agenda do mês inteiro, intercaladas com as chaaaatas musiquinhas...

Carrie, a Estranha disse...

Ahhh! A moça de PV!!! OOooooi! Bigada!

Oi Stella,

É, não é exatamente a minha cidade, embora eu a considere como tal, pq não ansci lá, nem nunca morei, mas é a cidade de mamãe.

Bjs