Tô miózinha, povo. Tomei o genérico do Allegra. E dormi com os vidros da sacada abertos, apenas as venezianas fechadas, o que sempre dá uma aliviada. E hoje veio a faxineira dar uma geral aqui.
A nossa faxineira. A nossa faxineira merece um post. A faxineira de Versailles limpa o palácio real há 30 anos. Ou seja: desde que ele foi construído e eu tinha um aninho. Chamemo-la de Senhora G.
Versailles, nos áureos tempos, quando Luís XIV ainda era vivo, tinha uma arrumadeira, uma passadeira e uma faxineira – sempre a Senhora G. Quando eu era um bebê roliço e inocente – hoje sou apenas roliça – ainda tínhamos uma babá. Todas dormiam nas dependências do palácio. Atualmente, depois da revolução francesa e debandada da corte, temos apenas uma empregada diária. A senhora G é chamada apenas em ocasiões especiais.
Senhora G é mulata forte. Sacudidona. Tem a mesma cara desde que eu sou criança. Sempre chegava com a desgraça do dia. Alguma história triste e terrível e catastrófica envolvendo algum vizinho/parente/amigo. Diz Formiga Irmã que eu, quando era criança, impressionada pelas histórias da Senhora G (eu sempre fui uma criança que ficava de ouvido em pé com as histórias dos adultos) dizia: “mamãe, qualquer dia ela vai chegar aqui dizendo que o marido morreu!”. Eu não me lembro disso, mas devo ter dito, afinal as desgraças dela eram progressivas. Senhora G fala. Mas fala. Pensem em uma pessoa que fala. Pois é. Multipliquem por mil. Não é nem a metade do que a Senhora G fala.
Ela fala sozinha. Um fluxo ininterrupto de palavras. E ela é aflita e agitada. E vai narrando a faxina. Eu vou ali, limpar o quarto, vou tirar esses móveis, passar pra cá, ai to te atrapalhando; não, mas é rapidinho, só colocar isso...(eu sempre digo que o problema da pessoa que fala sozinha é quando resolve falar sozinha em público. Porque quem tá em volta não sabe se é pra responder ou não. Quer falar sozinho, ótimo. Eu falo muito sozinha. Mas fale realmente sozinho).
E a Senhora G é ligeiramente gaga. Como todo gago, ela tem momentos de gagueira e outros em que a fala corre. Então nesses momentos, em que ela consegue falar, ela desembesta a falar loucamente. Rápido. Sozinha. Dá uns solavancos e vai embora.
Certo dia, contando sobre um tiroteio no bairro dela, disse pra minha mãe que a bala perdida 24 horas em volta da Terra até achar uma vítima. É sério. Tipo: nossa, não acertei ninguém, vou dar um rolé na estratosfera e depois volto pra atacar.
Mas eu tenho um enorme carinho pela Senhora G. Afinal, ela é quase da família. Ela é a única funcionária do palacete que permaneceu depois da revolução francesa. Se recusou a ir com o povo. Ela não faz mais faxina em nenhuma casa, a não ser aqui.
Ela criou os filhos todos muito bem – têm bons empregos, hoje em dia – construiu a casa dela e cria até netos. Olho para seus recém prateados cabelos e vejo uma vida de dedicação aos outros. De orgulho e alegria no que faz.
3 comentários:
Hahahahaha, a parte da bala perdida é a melhor! Viva a Dona G!
Hahahahaha, a parte da bala perdida é a melhor! Viva a Dona G!
Puxa... 30 anos é uma vida. Nem casamentos duram tanto tempo.
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