quinta-feira, dezembro 06, 2007

Seis anos sem papai


Recebi essa carta essa semana. Foi escrita pelo Leo Lama, filho do Plínio Marcos, no dia da morte do pai.

Ontem fez seis anos que meu pai morreu. Nem postei nada porque fiquei o dia todo fora. Apesar das óbvias diferenças – meu pai era médico e bem mais comportado do que o Plínio Marcos em muitos sentidos – senti uma incrível semelhança entre ele e o meu pai.

Porque isso é ser pai. Esse foi meu pai. E vocês podem estar pensando que eu digo isso porque ele morreu. Não. Eu digo isso da minha mãe, também. Minha mãe – que aprendeu a mexer na internet com quase 70 anos só pra ler o meu blog – É assim. Apostam em sonhos muitas vezes feitos em castelos no ar. Ainda que eles mesmos não concordem.

Dei uma editada pra não cansar o leitor (é longa), mas quem quiser eu a tenho na íntegra.



“Meu pai morreu. Todo pai morre. Agora estou aqui pensando: o que foi que meu pai me deixou? Apartamento? Não. Carro? Nem uma bicicleta. Dinheiro? Ele não conseguia pagar nem as próprias contas. Mas pagava a dos filhos. Roupas? Só um chinelo velho, mas meu pé é maior. Sem testamento, sem herança, sem nada? As peças. As peças de teatro? De quem são as peças de teatro? Meu pai era escritor. Escritor de teatro. Teatro? Teatro dá dinheiro. Tem gente que escreve peça pra ganhar dinheiro. Não, meu pai não. Não ganhou muito dinheiro com teatro. O que ganhou, gastou. Deu dinheiro pra muita gente. Meu pai não era um bom administrador. Era um "maldito", diziam, um "marginal", mas não era bandido. Por que ele era maldito, afinal? Será que não pensava nos filhos? Por que não escreveu peça pra ganhar dinheiro? "Ninguém tem direito de pedir a um artista que não seja subversivo" . Meu pai escrevia sobre puta e cigano sem dente. Puta, cigano sem dente e cafetão. Puta, cigano sem dente, cafetão, presidiários, desempregados e fudidos. Puta e cigano sem dente? Puta, cigano sem dente e cafetão é chato, porra! Puta, cigano sem dente e presidiários não dava dinheiro. Puta, cigano sem dente e desempregados não tinha "patrocínio". Mas eu queria tênis americano, eu queria camisa Lacoste, camisa Hang Ten.


Meu pai tinha que ganhar dinheiro. Por que ele insistia em escrever peças sobre puta, cigano sem dente, cafetão e presidiários? Ele insistia. Puta, cigano sem dente, cafetão, presidiários, desempregados e fudidos. E o ator e Jesus Cristo e nada de "comédia comercial". Mas eu queria o meu "All Star", eu queria ter todos os discos dos Beatles. "Pai, me dá dinheiro pra comprar uma guitarra!" E eu tive, eu tive a tal guitarra, eu comprei todos os discos dos Beatles com o dinheiro dele (depois tive que comprar tudo de novo em CD com o meu dinheiro e agora dá pra baixar de graça na internet). Calça boca fina, camisa Hang Ten. Onde ele arrumava dinheiro? Onde ele arrumava dinheiro pra me comprar tênis "All Star"? Ele achava que isso era "lixo americano". Ele achava que essa merda importada só servia pra aumentar a nossa alienação. Meu pai era generoso. Ele não ia deixar de me dar uma coisa que eu queria, só porque ele achava que o que eu queria era imposto pela sociedade de consumo. Ele tentava me orientar, mas respeitava minha opinião de adolescente alienado. Onde ele arrumava dinheiro?
(...)
Quando eu tinha uns 12, 13 anos, lá estava o ônibus da escola pronto pra partir pra Porto Seguro com todos os meus amiguinhos dentro e os pais, do lado de fora, dando tchauzinho. E um amiguinho meu perguntou: "Quem é seu pai?" Eu não tive dúvida: "Meu pai é aquele!" E o meu amiguinho: "Aquele de terno e gravata? Aquele que tá conversando com o meu pai?" E eu: "É, aquele." O meu amiguinho gritou: "Pai, esse aí é o pai do Leo!" E a professora ouviu. Não, meu pai não era aquele de terno e gravata. Meu pai era outro. Era o que todo mundo tava chamando de mendigo. Meu pai era aquele de macacão e chinelo! Gordo de macacão e chinelo! "O pai do Leo é mendigo, o pai do Leo é mendigo!" Afinal, quem trabalha tem que usar terno e gravata. Naquela época, um moleque de 12, 13 anos, era um tapado. Ou isso era característica minha? "Pai, por que você não trabalha? Pai, por que você dorme até meio dia? Pai, por que o pai do Paulinho tem carro e você não? Por que você chega de madrugada em casa? Pai, por que você anda de macacão e chinelo? Pai, me dá dinheiro pra comprar..." E o meu pai me dava dinheiro. Eu estudava em escola de "burguês". Eu estudei nas "melhores escolas". E olha que o meu pai odiava escola. "A cultura nas mãos dos poderosos constrange mais do que as armas; por isso, a arte e o ensino oficiais são sempre sufocantes", ele dizia. Ele saiu da escola na 4ª série do primário. Ele era canhoto. Na escola, as professoras o obrigavam a escrever com a mão direita. Ele fugiu da escola, ele sempre foi da esquerda. Era chamado de analfabeto. Com 21 anos escreveu "Barrela!". "Me chamavam de analfabeto, como se isso fosse privilégio meu, neste país." Meu avô queria que ele trabalhasse no Banco do Brasil, mas ele queria é subir num banco no meio da praça e fazer números de palhaço. A família chegou até a pensar que ele era débil mental. Meu pai foi pro circo. Ele amava o circo. Foi ser palhaço de circo. Era o palhaço Frajola. A escola dele era o circo, a minha era escola de "burguês". Mas como ele pagava a minha escola?
(...)

Uma vez o meu pai tava com uma dívida muito grande, tava com dificuldade de pagar as prestações de um apartamento que ele comprou pra gente. Daí um belo dia a Ford ligou pra ele, convidando pra fazer um comercial. Era uma puta grana, dava pra pagar as dívidas e ficar bem tranqüilo por uns tempos. Meu pai não fazia comercial.
(...)
Tinha mau tempo, mas ele não reclamava, eu nunca ouvi o meu pai reclamando da vida. Eu nunca ouvi o cara dizer que a vida tava difícil, ou que era "foda". Não. Ele só reclamava das injustiças. Ele berrava contra as injustiças, os preconceitos, a apatia. Meu pai é o Plínio Marcos, porra! Bela merda, tem gente que nunca ouviu falar. Pra muitos era só um fudido que não deu certo na vida, andando feito mendigo pelo centro da cidade. Já morreu. Não era melhor do que ninguém. (Não?)"Tudo se consegue com esforço; não se chega a lugar nenhum sem caminhar."Com 15 anos eu quis sair da escola. Ele disse: "Sai logo dessa merda, eu te sustento até você encontrar sua vocação!" Eu saí, eu saí daquela merda na metade do 1º colegial. Acho que qualquer ser humano com o mínimo de sensibilidade, sabe: o ensino do jeito que é, faz mal pra saúde.
Eu devia ter uns 17 anos, era de madrugada. Eu morava com ele. Eu tava na mesa da sala com o violão, triste, querendo encontrar a minha vocação, sem saber o que dizer, inibido, pensando em todos os artistas que eram muito melhores do que eu. Meu pai levantou pra tomar água, me viu ali, não disse nada. Foi até o escritório, voltou com um livro e leu um poema pra mim. "O corvo" do Edgar Allan Poe. Não disse nada, só leu a poesia. Não foi o conteúdo, foi o tom da voz dele, aquela voz doce que ele tinha. Ele declamava e eu ouvia como se ele me pegasse no colo. Foi dormir e me deixou ali, ouvindo o corvo dizer: "para sempre!". Eu virei escritor, com 21 anos escrevi "Dores de Amores". Meu pai era um incentivador, idolatrava os filhos. Queria ser mergulhador só porque o Kiko, meu irmão, é. A Aninha, minha irmã, era tudo pra ele. Eu fiz vários shows com ele, pelas faculdades, pelos teatros, pelos bares. Ele contava histórias e eu tocava violão. Meu pai era generoso, violento, essencial, amava, amava tanto as pessoas que chegava mesmo a odiá-las. Lutava, berrava e me acordava. Meu pai não me deixou apartamento, carro, dinheiro, bicicleta. Nem o chinelo dele me serve. Eu tive e tenho que ganhar o meu próprio dinheiro. Até hoje, muito pouca gente quer montar as suas peças e muito pouca gente quer assistir. Meu pai já não precisa mais vender livro na rua, pra quem não quer comprar, ou pra quem compra só pra "ajudar". O que eu mais queria é que ele me ouvisse agora: "Pai, você não me deixou nada que se possa enxergar. Nem carro, nem apartamento, nem bicicleta, nem chinelo. Me deixou a sua indignação, um pouco do seu temperamento, a lembrança de ver você acordando todo dia com uma puta força de vontade, com uma puta vontade de viver, sempre alegre, sempre fazendo piada das próprias desgraças, sempre dando tudo que ganhava pros filhos, sem nunca acumular porra nenhuma." (...)

(...)

É isso aí, pai: tanta gente te amava. Você sabia? Acho que ninguém te amou tanto como a minha mãe. O amor dela ecoa em mim.
Mas, e eu, pai? E eu? Será que eu vou ter a mesma fibra que você? Eu não gosto de viver como você gostava. Eu não tenho a sua coragem. "A poesia, a magia, a arte, as grandes sabedorias não podem habitar corações medrosos." Eu acho que eu vou me vender, pai, eu acho que eu já sou um vendido. Eu só queria ser essencial, essencial como você. É difícil. Eu reclamo. A vida tá uma bosta! Tá difícil de encontrar pessoas essenciais, pai. As pessoas só falam e pensam no que é supérfluo. Eu não tenho assunto. Eu me sinto sozinho. Eu não sei sobre o que escrever. O mundo tá se destruindo, tem muita gente fudida, tem muitas festas e muita fome. Que indecência, pai, que vergonha que eu sinto desse tempo que eu vivo. Eu sei que você não tem saco pra choramingo, pai, mas me deixa desabafar, pai, só hoje, me deixa te falar sobre o sonho dessa gente, você sabe, essa gente, os "homens-pregos" , fixos no mesmo lugar. Essa gente quer ter carro, pai, casa com piscina, essa gente quer ser rica e famosa, essa gente quer ser musculosa e quer ter bunda, essa gente diz que acredita em Deus e fode ele, essa gente não quer ser essencial, pai, essa gente... essa é a minha gente, pai, às vezes eu me olho no espelho e me acho parecido com essa gente. Me perdoa.
Um beijo do seu filho, Nado, que ainda usa o nome artístico que a gente inventou juntos: Leo Lama”.


Ser essencial dá trabalho. Poucos conseguem abrir mão do supérfluo. E ambos se confundem o tempo todo. Poucos, ainda, sabem apoiar o essencial pros outros, mesmo achando-o supérfluo.

Um brinde aos homens e mulheres essenciais! Um brinde ao meu pai! Setenta e seis anos de vida mais seis de morte. Oitenta e dois anos. Porque seres essenciais não se prendem ao tempo.

10 comentários:

Anônimo disse...

Carrie, este texto me fez lembrar deste vídeo maravilhoso, que inclusive ganhou um prêmio.

http://br.youtube.com/watch?v=gl74J-aAnfg

vera maria disse...

Muito tocante a carta, carrie, e o plinio, junto com o vianninha e tantos outros foram essenciais para toda uma geração, o filho dele tem razão de reclamar, esse é um tempo de supérfluos quase tudo, me lembrei do filme 'a insustentável leveza do ser' nem sei por quê.
um abraço,
clara

Anônimo disse...

Carrie, vc pode mandar o texto inteiro pra mim? Me senti como o Leo porque eu até gostaria de ser essencial , mas é difícil... o supérfluo é muito bom...

riviafonseca@gmail.com

Beijinhos,

Rivinha.

Lenissa disse...

Cataploft!

É.. os egípcios diziam que pra a imortalidade realmente acontecer, era preciso lembrar dos mortos e homenageá-los sempre.
Os inesquecíveis são imortais.

Bárbara Anaissi disse...

tô sem palavras... perdi meu pai esse ano e a carta foi um soco no estômago, mas um soco essencial. manda o texto completo pra mim?

Anônimo disse...

Um texto que de tantas palavras bem usadas me deixou sem palavras para escrever algo aqui. Impressionante! *.*

Beijoos!!

Anônimo disse...

Que lindo, Carrie! Tou eu hoje aqui, em pleno escritório, numa Sao Paulo que não é minha, chuvosa e cinza, com o olho raso d'água...

Quando der, manda o texto completo pra mim, por favor!

Beijo grande, do
Alvaro

Anônimo disse...

Carrie, tbm gostaria do texto na íntegra. Se puder me passar, agradeço imensamente!
meu email.: natizee@yahoo.com.br

Beijoos!!

Anônimo disse...

Carrie, se não for pedir demais, poderia mandar o texto completo para bdraak@gmail.com ?

Grato

SOFIE FATALE disse...

ai, vc me pega, bate na minha cara, esbofeta (?) meu coração e..ai, que coisa wandesca!mas perdi a amanda esses dias depois de termos conseguido coletar 8 mil potinhos com sangue; antes eu perdi o pai da minha melhor amiga que era um pouco meu pai tb-a mesma doença- e hoje nós duas quebramos um pau porque ela não aceita a morte do pai (longa história); antes perdemos a Natalia -a amiga mais amada que eu tive na minha vida inteira, a mais linda, a mais gueixa (Olhinhos puxados), doce, humilde qu morreu em um acidente de carro com 19 anos e antes dela, meu avô que era meu pai.sucessão de perdas, desencontros, vão..tchau.e a gente esquece que a vida tem data de validade...a gente esquece de muita coisa.muita coisa!