Que ela tinha tanta coisa pra fazer. Justo hoje, chega na fila pra comprar bilhete pro metrô e descobre que esqueceu sua bolsinha-de-ladrão (onde ficam as moedas e notas pequenas) em casa. Volta em casa ou passa no banco? O banco tá mais perto. Isso porque ela queria chegar mais cedo, pra fazer mais coisas. Volta, tira dinheiro, vai pra estação de novo e segue.
Dentro do metrô o único banco disponível é o de cor laranja. Preferencial. Para pessoas com necessidades especiais. Ela era uma pessoa com necessidades especiais. Se alguém viesse falar alguma coisa ela listaria todas as suas necessidades. Todas muito especiais.
Ela desce na Central Station, como anuncia a moça do auto-falante num inglês doncorleônico. Pensa no filme do Waltinho e o quanto ele ganhou de dinheiro. Miséria tipo exportação. A maioria daquelas pessoas não deveria nem ter visto o filme.
O sol é insuportavelmente quente. Fere a pele. Dói. Machuca. Arde. E também ajuda a disseminar o fétido cheiro de urina podre acumulada durante anos daqueles que mijaram pelas imediações. Um cheiro acre. O cheiro de mijo da Central nunca vai embora. Chove, faz sol, mas ele sempre permanece. Do alto falante um locutor anuncia as principais notícias do jornal Meia Hora. Um jornal que custa 50 centavos, pra ser lido em meia hora pra quem tem meio cérebro. Isso na cabeça de malditos publicitários-jornalistas (ou jornalistas-publicitários, dá na mesma). Camelôs vendem pano de chão, bolsas e outros artigos, quase todos femininos.
A poluição dos carros que passam em alta velocidade, misturada ao asfalto quente faz uma pequena nuvem, quase como uma neblina de poluição e calor. Um fog tropical. Um garoto descalço solta pipa. Será que ele mora naquele morro logo ali? Será que tem mãe? Casa? Quanto durará até que ele seja aliciado pelo tráfico ou morto numa chacina? Por hora ele solta pipa. É tudo.
As pessoas vão e vem. A maioria séria, preocupada. Algumas com o que parecem ser exames na mão. Estarão doentes? Quanto tempo lhes restará de vida? Quanto tempo ela tinha de vida? O sinal das pistas da Presidente Vargas é muito rápido. Nunca dá tempo de atravessar as quatro pistas de uma vez. Primeiro custa a abrir pros pedestres. As pessoas se aglomeram na calçada e os mais ousados correm mesmo com o sinal aberto. As pessoas ficam mais próximas e ela pode sentir o cheiro delas. Cheiro de creme para pentear com tutano de boi, de sabão, de desodorante, de perfume barato, de perfume nem tão barato e de suor. Percorre duas pistas e pára. Pensa onde ele estará neste exato momento, fazendo o quê. Mãe briga com menino. Abre sinal. Traça uma reta e vai em frente sem nunca desviar, pois se desviar o outro que está vindo também titubeia e os dois vão ficar numa dança de vai-não-vai em plena Presidente Vargas. Lembra daqueles versos “aonde está você agora além de aqui, dentro de mim”. Buzinas. Traçar uma reta e nunca desviar.
Justo hoje, que a vida a obriga a ser objetiva.
Justo hoje.
11 comentários:
sabe, vc escreve tão bem! O texto me remeteu ao tempo em que morei na Senador Vergueiro e tinha que resolver coisas no centro, debaixo daquele sol escaldante... Apesar de tudo, tenho saudades do Rio.
Beijos!
Carrie, passei só para avisar que nunca levo menos de dez minutos para atravessar a Presidente Vargas.
Mergulhão, já!
Ô, Ione! Bigada! Então, venha matar as saudades qualquer hora!!
Andrea,
Mas vc passaria num mergulhão na Presidente Vargas? Na certa o local vai virar um grande abrigo para mendigos, consequentemente vai ter um cheiro de mijo mil vezes pior do q o da Central, se tornar um lugar ermo e deserto, além de se tornar ponto de assalto, estupro, sequestro, esquartejamento e tudo o mais que a nossa bandidagem tão competente em inventar quiser fazer. Prefiro correr o risco de atropelamento ou esperar 15 minutos.
O bom do Rio de Janeiro é que a solução nem precisa vir pq a gente já sabe q ela vai virar um problema! Então nem se gasta dinheiro e nem neurônio pensando! Hahahaha...
Bjs
Bjs
ai! me lembrou o infernal calor de Porto Alegre.
como se eu estivesse muito longe desse calor!
Lindo, Carrie.
(Clapclapclapclap)
(Sem querer rasgar seda e já rasgando, seu blog é um dos que leio com mais prazer atualmente.)
ô, Claudio! Q beleza! Obrigada! Vc é sempre tão gentil. E eu sou uma pessoa tão suscetível a gentilezas...
O seu blog tb é um dos q eu mais gosto e um dos mais bem escritos. Portanto um elogio vindo de vc conta muito - não q elogios não contem, vindo de onde quer q seja, mas...ah, entendeu, né?
Sem querer ragar seda já rasgando,q pena q vc é casado(daquelas q não entende o elogio e mistura tudo, né? Rsrsrs). Nada pode ser perfeito. Pq eu sei como as pessoas são só de ver os seus escritos.
Bjs
mandou ver!
limabarretianamente carioca.
PS: Talvez O mais bem escrito. Gramaticalmente falando.
JH,
Obrigada, meu caro. Melhor seria fonsequianamente, não?
podes crer...
mais contemporâneo. ;-)
fufufufufufufufuuuuuuui...
JH
Como diz o Serginho Groisman: "mto bom"!
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