terça-feira, junho 20, 2006

Slow (e)motion

Hoje foi um daqueles dias difícil de começar. Aliás, há dúvidas se ele começou de fato ou se um piloto automático tomou conta de tudo. Ou quem sabe um espírito baixou em mim. De porco. Hoje foi um daqueles dias difícil de terminar.

Acordei bastante atrasada. Pescoço duro de dor. Como já estava atrasada mesmo resolvi fazer tudo com calma. Enquanto me arrumava liguei a TV na reprise do Bom Dia Brasil na GloboNews. Mostraram o velório do Bussunda. Não tenho forças pra comentar sobre a morte do Bussunda. É um daqueles fatos que não há o que dizer. Não dá nem pra por a culpa em ninguém. É o espanto total e absoluto. A mais pura definição de tragédia. Só vou destacar uma imagem que eu acho que sintetiza tudo: a filha dele de 13 anos, encolhida no colo da mãe, chorando. Devia ser proibido que um ser humano de menos de 16 anos fosse obrigado a passar por coisas desse tipo. A vida é estúpida demais, às vezes.

Saio. Vou tomar café na padaria/lanchonete na esquina, perto do metrô. Resolvo compensar o atraso tomando um bom café da manhã e pulando o almoço –afinal já são quase 10 horas. Instalaram uma TV de plasma na padaria, com certeza pra que as pessoas assistam aos jogos. A TV está ligada. Várias pessoas passam de um lado pro outro: indo trabalhar, estudar, malhar. Até uma doida de biquíni passa. Todo mundo com cara de ressaca, sono. Até os cachorros. Cabelos molhados. Muita gente indo pra academia se purgar dos pecados da gula cometidos no final de semana através de avançadas técnicas de mortificação corporal (depois falam da Opus Dei...). A padaria, o boteco do lado, a loja de colchões, a papelaria: tudo decorado com bandeirinhas verde-amarelas. Pessoas passam com camisetas verde-amarelas. Não visto amarelo nem que me paguem. Não combina com a minha cutis. Ainda mais depois que pintei o cabelo de vermelho. Pareço um ovo frito com ketchup. E verde, só oliva.

Na TV de plasma o canal está ligado na SportTV. Mostra o novo hotel sei lá das quantas em que os jogadores vão ficar na próxima cidade da Alemanha. Piscina aquecida no quarto, camas de 1,80 de largura. Cenários nababescos de dar inveja aos sultões da Arábia Saudita. Em frente à TV, o garçom - que deve ganhar um salário mínimo - olha fixamente pra tela. Os jogadores são da idade dele, têm a mesma origem social, na sua maioria, e ganham o que ele provavelmente não verá em uma vida inteira. A vida é estúpida, às vezes.

Chego na Central e é como receber um choque de 220 volts de realidade. Presidente Vargas. Sinal. Buzina. Ponto final de ônibus. Meninas com camiseta da C&A que oferecem cartões da loja estão reunidas recebendo instruções de uma espécie de supervisora. A C&A, cuja garota propaganda, Gisele Bündchen, declarou recentemente que odeia lojas de departamentos. Garotas que nunca vão ganhar um milionésimo do que a Gisele ganha fazem propaganda pra que ela ganhe milhões numa coisa que ela nunca realmente compraria. A vida é estúpida, às vezes.

A pesquisa corre arrastada no Arquivo Nacional. Paro umas três vezes pra ir ao banheiro e tomo uns dois cafés, mas uns quatro copos d’água. Consulto documentos de 40 anos atrás de um instituto que articulou o golpe de 64 no Brasil. Defendem a propriedade privada, a preservação dos direitos democráticos, a restauração da ordem e a condução da massa por uma elite esclarecida – a saber, os próprios -, além de acusarem manifestantes de baderneiros. Resultado? Basta abrir os jornais de hoje. Vinte e um anos de ditadura militar e a piora considerável de todos os problemas que eles queriam erradicar deram nessa pocilga. Quer dizer, 500 anos deram nessa pocilga. Mas os últimos 30 foram piores. A vida é estúpida, às vezes. E eu tenho 395 coisas pra fazer essa semana.

Assim caminha a humanidade. A passos de formiga e sem vontade. Em dias como esse, só Beatles redime a alma. “Living is easy with eyes closed. Misunderstanding all you see/It’s getting hard to be someone /But it all works out/ It doesn’t matter much to me”.
Strawbery fields forever. And ever. E garotas com olhos de caleidoscópio e submarinos amarelos e céus de marmelada e... Sou a boba da colina. I am the Walrus. Goo Goo g’joob.

PS: Se ao menos você estivesse por aqui as coisas seriam mais fáceis. Ou eu teria a ilusão. Foda-se. Não importa mais. A vida é estúpida, às vezes. We CAN’T work it out.

2 comentários:

JH disse...

cotidianas-questões que saltam tapas na cara atônita de quem se dispõe a observar com mais detalhe o fluxo do quase-nada-tudo que nos sufoca.


mas, ainda assim, tá lá a poesia pra redimir...


que tá tb nesse teu belo texto!


bye


PS: às vezes, quem não se sente um "nowhere man"? ("Sitting in his nowhere land/ Making all his nowhere plans for nobody/ .../ Doesn't have a point of view/ Knows not where he's going to/ Isn't he a bit like you and me?")

Anônimo disse...

Sim. Ou como Eleanor Rigby, and "all the lonely people". Ou como em "she's leaving home after living alone for so many years". Enfim, Beatles é sempre não apenas uma rima, mas uma solução!