"E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?"
(Nietzsche, F. A gaia ciência)
Podemos supor que, desde o momento em que uma situação, tendo sido uma
vez alcançada, é desfeita, surge um instinto para criá-la novamente e ocasiona
fenômenos que podemos descrever como uma compulsão à repetição
(FREUD. “Conferência XXXII: ansiedade e vida instintual”, p. 132)
Ooops, I did it again
(SPEARS, Brtiney)
Outro dia me peguei pensando: "estou velha demais para...". Daí parei e me corrigi. Na verdade, "sempre fui velha demais para...". Ou talvez esteja numa fase "velha demais para" e "nova demais para me achar velha". Aliás, quando você ouvir alguém dizer "tô ficando velho", acredite: trata-se de alguém novo. Afinal, velhos estão preocupados demais em se manterem vivos pra perder tempo pensando se estão ficando velhos. Não que a velhice em si me incomode. Não mesmo. Me incomoda a proximidade da morte - que a velhice traz pra muito perto.
E muito, muito mais do que tudo isso, me incomoda uma aura de deja vu que paira na minha vida - ok, não é a melhor palavra, mas vamos lá. Nos mínimos e máximos detalhes. Nas menores conversas. Nas pessoas. A sensação de que eu já sei o que o outro vai dizer. Que eu conheço. Que eu sei o que vai acontecer. O que é ridículo. Porque as pessoas estão sempre nos surpreendendo. Mas eu tenho essa sensação desde. Sempre.
E muito, muito, muito e muito mais do que tudo isso é a sensação de que eu me repito. Para mim mesma. Nos mínimos detalhes. Eu me prego peças o tempo todo. Eu caio nas minhas próprias armadilhas o tempo todo. Num looping infinito. Como uma criança que precisa repetir mil vezes a mesma brincadeira, mesmo sabendo do final. Como uma reprise de Friends, onde mesmo sabendo o diálogo seguinte, você ainda ri. E ri milhares de vezes, quantas vezes você assistir.
Essa fode comigo.
Pensar que eu preciso sempre andar três passos e voltar quatro; correr cinco quilômetros e tropeçar na linha de chegada.
Claro, nunca se volta exatamente ao mesmo lugar, nunca se retrocede exatamente o mesmo tanto que se andou. Há sempre um ganho neste percurso. Já consigo ver as coisas em uma espiral, pelo menos e não mais uma linha reta. Mas - como já disse umas 498.276 vezes aqui, me pego sempre a espiar meu eu no orbital da frente, pensando: humm...eu já tava ali, pra que fui voltar?
E eu me perco em atividades absolutamente inúteis enquanto o essencial é varrido pra debaixo do tapete. Pra daqui a pouco. Pra mais tarde. Pensando que vai dar tempo. Que vai dar certo. Que depois eu ajeito. Ou não pensando. Simplesmente adiando, porque foi assim que eu aprendi a ser. Vendo os dias escorrerem.
A única coisa que me surpreende em mim mesma é a minha enorme capacidade em me repetir. E assistir à própria repetição, mesmo sabendo que não é legal.
Como um Estragon que quer acreditar que algo vai acontecer, que alguém vai chegar, ainda que bem no fundo saiba que é mentira (ou ao contrário: quer acreditar que nada vai acontecer, ninguém vai chegar, ainda que bem no fundo saiba que é mentira).
8 comentários:
Seu post de hoje me tocou especialmente. Às vezes, acho que não conseguirei sair do mesmo processo de repetição. Percebo o processo, mas retomo (quase sem perceber ou percebendo?.
É engraçado pensar sobre isso pq nessas hs parece q há um sabotador dentre de nós que não nos permite seguir em linha reta. Ah! Como esse post me fez pensar em coisas que buscava ocultar!
Abraços!
O post foi muio bom! muitas coisas para alar, que mereciam uma cerveja e uma cadeira confortavel...
Mas "Ooops, I did it again (SPEARS, Brtiney)" foi O-T-E-M-O! hahahahahahahaah
Maria Clara,
Todo nós estamos condenados repetir nossos próprios erros eternamente. Alguns mais, outros menos. Alguns com erros piores, outros com erros melhores.
Luana,
Hehehehe...é, eu tb gostei (daquelas q escreve e gosta do próprio texto).
Bjs
Estamos condenados a repetir os mesmos erros? Sei lá, eu sei que tem merdas que já fiz 1000 vezes e ainda farei mais 1000, mas acho que a minha (criatividade? inépcia? loucura?) é tanta que eu sempre arranjo um jeito novo de pisar na bola, rs...
Lembro quando eu me encontrava neste loop infinito, vi uma matéria no Fantástico falando sobre budismo e cheguei a anotar no meu diário as 3 regras básicas que eram:
- Se livrar do ciclo vicioso
- Desapego
- Tudo passa
Interessante perceber que nós mesmos nos sabotamos... só o fato de vc reconhecer isso acho que já é meio caminho andado.
Total "Feitiço do Tempo", nénão?
Eu diria que esse post é bem corajoso no sentido de abordar nossas limitações de frente mas sabe o que pode ser consolador ? Que repetimos também os acertos e para me sentir menos imbecil, eu prefiro essa versão, a dos acertos ! Mesmo sabendo que erros e acertos talvez não passem de mera retórica, afinal a vida não é facil para ninguém.
Como eu queria vc como minha paciente, caso eu tivesse um consultório...te atenderia de graça! Belíssimo post....que coragem de se conhecer assim!
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