José Castello, crítico literário do Globo (contribui especificamente para o Prosa & Verso), no P & V de sábado retrasado, de 05/09, fez uma crítica sobre o livro “No teu deserto”, de Miguel de Souza Tavares, que estará domingo que vem na Bienal, no Café Literário. Neste artigo ele aproveita a metáfora do deserto – que é tema do livro de Miguel de Souza Tavares, tanto literal como metaforicamente - para falar sobre os desertos que cada escritor atravessa para escrever.
José Castello diz que todo escritor atravessa um deserto, que, evidentemente, é único para cada escritor. Para Fernando Pessoa eram as ladeiras de Lisboa; para Machado, as ruas do Rio; para Graciliano, estava na própria palavra. “Virgínia Woolf trazia o deserto dentro do peito [...] vivia atordoada por sombras (miragens) e acreditava possuir sentimentos que não podia nomear (sentia-se seca). Trazia o espírito sacudido por uma ventania de vozes, que lhe doíam tanto que achou melhor afogar-se – nas águas de um rio – do que sufocar no pó”, diz Castello. E “para Clarice, estava além das palavras, era uma reserva arcaica de mudez e de silêncio que nossa vaidade nos impede de acessar”.
Penso que todos nós, escritores ou não, temos nossos desertos. E a forma como conduzimos nossas vidas é a forma de lidarmos com esses desertos (nem sempre lidar significa atravessá-lo, às vezes lidar vem da constatação que nunca seremos capazes de percorrê-lo, mas é preciso encarar o deserto de frente).
Eu escrevo porque eu também tenho um deserto. Sim, eu escrevo. Ao contrário da Fernanda Torres que escreveu uma peça e disse que tem vergonha de dizer que escreve, pois quem escreve é Shakespeare ou Tchecov, eu escrevo. Eu não sou nem Shakespeare, nem Tchecov, nem sequer a Fernanda Torres, mas eu escrevo. Ainda que meus leitores sejam os 200 acessos diários – uns mais, outros menos. Eu escrevo. Eu escrevo porque se você não acha que o que você escreve é digno de dizer “eu escrevo”, então não escreva.
Meu deserto é o espaço entre mim e os outros. Entre mim e o mundo. Que às vezes diminui, em outras aumenta. Desde criança eu sou atormentada pelo fato de que se o que eu vejo e como vejo, é igual ao que os outros vêem. Se o que se passa dentro de mim é igual ao que se passa dentro dos outros. Daí meu medo, constante, de ficar maluca. Porque ficar maluca, para mim, é descobrir que o que eu penso não é igual ao que ninguém pensa. E realmente não é, como não é o igual ao que ninguém pensa. Ao mesmo tempo em que é – os textos que eu mais recebo comentários de identificação são aqueles mais íntimos e, teoricamente, mais “únicos”.
Mas o meu deserto é esse. Um imenso e inenarrável gap entre mim e o mundo que me cerca. Seja em atos, palavras ou pensamentos. Planos de vida. Sonhos. Durante muito tempo eu tentei ignorar esse gap. Eu tentei achar o meu lugar no mundo, achando que o que faltava era apenas encontrá-lo, até descobrir que ele não existe. Pra muita gente ele não existe, eu sei. E eu teria que cavá-lo com as minhas próprias mãos, pois descobri que não existe nem a ferramenta pra cavar o meu lugar. Além disso, o meu lugar é feito de areia da praia fininha em dia de muito vento – ou talvez melhor dizendo: areia do deserto. Quando eu acho que eu o cavei, ele muda em cinco minutos. Moldá-lo merece uma precisão de um artesão, além de uma observação atenta dos ventos. Olho pra trás e minhas pegadas não estão mais lá. Tudo se dissolve aos meus olhos. E eu penso: cadê? Sequer consigo saber se caminhei ou se continuo parada no mesmo lugar, pois a paisagem parece ser a mesma. Aliás, essa é a pior parte dos desertos. Você não tem um ponto de referência e parece que está rondando no mesmo lugar.
Eu estou a tempo demais envolvida com os preparativos para cruzar o meu deserto. Mais do que eu sou capaz de suportar. Em um desses lugares que eu cavei com minha própria mão na areia fina eu descobri que a única forma de lidar com o meu deserto é criando. Mas eu olho pra trás e o vento levou meu lugar. E eu duvido que ele tenha existido algum dia. Penso que o deserto, o excesso de sol e a ausência de imagens outras produz miragens que nos confundem.
Eu simplesmente não agüento o que a maioria agüenta. E vice versa. Eu não consigo ficar num emprego mais ou menos. Simplesmente não consigo. E outras tantas coisas na minha vida.
Nunca vou me esquecer de uma tirinha do Calvin - que eu sempre adorei – que a minha amiga Fló me deu lá pela sétima ou oitava série, mais ou menos. A tirinha era o Calvin sentadinho na carteira, assistindo aula, aparentemente calmo. Daí em um momento seguinte ele simplesmente saiu correndo da sala, com todo mundo olhando espantado, pois ele simplesmente não agüenta mais ficar ali. No momento seguinte ele é capturado e volta pra sala. Fló me deu e disse: “isso é a sua cara”. Deve estar colado em alguma agenda. Mas o pior é constatar que continua sendo a minha cara. Eu continuo tendo um impulso irrefreável de sair correndo dos lugares. Mesmo – e principalmente – quando eu estou aparentemente calma.